DOS ARQUIVOS DE ASAS

Quem atingiu o USS Stark?

Por Tom Cooper

(matéria gentilmente cedida pelo site “War is Boring”, warisboring.com)

 Em 1987, uma aeronave iraquiana não-identificada atacou a fragata norte-americana, causando a morte de 37 de seus tripulantes. O ataque foi atribuído a um Mirage F.1, mas isto estava errado…

Em 17 de maio de 1987, a fragata lança-mísseis da Marinha norte-americana (USN, U.S. Navy) USS Stark estava em patrulha na zona central do Golfo Pérsico, a cerca de 3km “fora” da declarada, pelo Iraque, zona de guerra ao largo da costa do Irã. Por volta das 22h00, o Stark se viu sob ataque do que aparentava ser um jato de combate da Força Aérea do Iraque (FAIr). Os radares no navio de guerra norte-americano passaram a seguir a aeronave, à medida que esta se aproximava, e o Capt. Glenn R. Brindel ordenou ao seu radio-operador para emitir um alerta, e pedir que o piloto da aeronave se identificasse.

O iraquiano não respondeu. Em vez disso, chegou a 35km da fragata e lançou dois mísseis antinavio Aerospatiale AM.39 Exocet.

Os radares do Stark falharam em detector os mísseis em aproximação, e assim, a tripulação percebeu tarde demais que estava sob ataque. Seguindo numa altitude de apenas três metros e guiados por seus sistemas relativamente simples de radar ativo, os dois mísseis travaram no navio como alvo, que representava o maior sinal de radar na área.

O primeiro penetrou no casco diretamente na altura da ponte de comando. Ele falhou em detonar, mas o combustível restante do motor-foguete explodiu e iniciou um incêndio. O segundo Exocet atingiu quase o mesmo ponto exato, mas detonou, abrindo um buraco de 3×4,6m no casco.

Combinados, os dois mísseis infligiram grandes danos e geraram incêndios que queimaram a bordo por cerca de 24 horas. Para evitar que seu navio afundasse, Brindel ordenou que se inundasse o lado de estibordo do navio, visando manter o buraco no casco acima da linha d’água.

Com apoio dos destróieres USS Waddell e USS Conyngham, a fragata mal conseguiu chegar ao porto de Manama, em Bahrain, no dia seguinte. O navio de apoio de destroieres USS Acadia atuou para realizar reparos temporários.

Na explosão e incêndio iniciais, 29 tripulantes morreram, dois no mar. Oito outros pereceriam de seus ferimentos, enquanto 21 foram feridos e sobreviveram. A análise da USN sobre o incidente indicou a retirada de Brindel de qualquer comando e o recomendou para corte marcial. Eventualmente, ele recebeu punições extrajudiciais e teve aposentadoria antecipada.

Como pôde acontecer de uma aeronave iraquiana atacar o Stark, e quais teriam sido os motivos e ordens do piloto permaneceram ocultos desde então. Baghdad alegou que o navio de guerra estava a caminho daquilo que fora declarada uma zona de guerra; mas posteriormente desculpou-se pelo episódio, de qualquer forma. “O piloto confundiu o Stark com um petroleiro iraniano,” declarou o governo iraquiano.

Embora sem crer totalmente nesta versão, o governo norte-americano nunca puniu o Iraque pelo ataque — Washington aceitou as desculpas e de fato culpou os iranianos. Tentativas oficiais de se encontrar e entrevistar o piloto que realizou o ataque falharam, apesar das promessas de Saddam Hussein de “acesso irrestrito”.

Algumas fontes militares norte-americanas bem posicionadas descreveram o piloto como “green”. Combinado com rumores sem substância sobre um “plano de voo errático”, tudo reforçou a versão oficial de Baghdad de que o ataque foi um erro.

E havia ainda o mistério sobre o avião atacante em si. A Inteligência norte-americana estava convencida de que este havia sido um caça-bombardeiro iraquiano Mirage F.1EQ, com carga máxima de dois AM.39 Exocet, que o deixariam lendo e difícil de voar.

O nascimento de uma ideia

 A corrente de eventos que levou ao ataque contra o Stark começou no início de 1986. Na sequência de uma série de ataques da FAIr contra o seu maior terminal petrolífero, em Khark Island, os iranianos decidiram reorganizar todo o seu esquema de exportação de petróleo.

Em vez de deixar que petroleiros arrendados por clientes estrangeiros se expusessem aos ataques aéreos iraquianos, os iranianos arrendaram eles próprios alguns petroleiros, no mercado internacional, e passaram a usa-los para levar óleo cru do terminal de exportação em Sirri Island até a parte baixa no Golfo Pérsico.

Esta organização parecia oferecer inúmeras vantagens. Sirri ficava a mais de 750km da base aérea iraquiana mais próxima e portanto considerado fora do alcance para o Iraque. Além disso, os petroleiros utilizados neste sistema de “shuttle” eram tripulados por profissionais com larga experiência em navegar nas perigosas águas ao redor de Khark — e bem treinados no combate a incêndios e outros danos possíveis de serem causados por um ataque de míssil.

Finalmente, Tehran esperava que tais navios pudessem estar mais bem protegidos pelos interceptadores da Força Aérea da República Islâmica do Irã (FARII) e dos navios da Marinha iraniana (MRII).

A decisão iraniana pegou os iraquianos de surpresa. A Inteligência militar iraquiana detectou que houve um crescimento nas exportações petrolíferas iranianas, mas precisou de várias semanas para descobrir o porquê.

Uma vez que a Inteligência tomou conhecimento do novo terminal de exportação em Sirri, a FAIr decidiu ataca-lo. Mas era mais fácil falar que fazer. Para colocar fora de ação o novo terminal, os pilotos precisar ter alguma ideia de em que iriam mirar.

Entretanto, ninguém no Iraque sabia como era Sirri, nem que tipo de terminal e de defesas aéreas se devia esperar lá. Além disso, calculando a distância até Sirri, a FAIr concluiu que mesmo os seus interceptadores-reconhecedores MiG-25RB Foxbat não tinham alcance para chegar à ilha.

Tentar reconhecer ou atacar a ilha com os Mirage F.1EQs era um grande risco. A ação poderia pôr a descoberto um segredo muito bem guardado – que a FAIr operava duas variantes do Mirage F.1, os F.1EQ-4 e F.1EQ-5, equipados para reabastecimento em voo.

Enquanto aconteciam estas discussões dentro do Quartel-General da FAIr em Baghdad, o Serviço de Inteligência iraquiano (SII) soube dos planos. Ocorreu que três oficiais do SII entraram no QG da FAIr e requisitaram uma reunião com o comandante desta, o Maj.-Gen. Hameed Sha’aban.

E os oficiais da Inteligência fizeram a Sha’aban uma oferta que ele não podia recusar. O SII tinha um jato executivo Dassault Falcon 50, configurado para transporte VIP e com tripulação do próprio Serviço. Sua ideia era instalar cameras de reconhecimento na aeronave e então voar uma surtida clandestina sobre Sirri Island, “mimetizando” um dos diversos jatos comerciais que voavam pelos corredores comerciais de tráfego aéreo locais.

Sha’aban aceitou a ideia e, alguns dias depois, o Falcon 50 em questão – de serial 122, ostentando as cores e marcas da companhia aérea Iraqi Airways e o registro civil YI-ALE – decolou do Aeroporto Internacional de Amman, na Jordânia, levando sua tripulação padrão de dois membros, mais três experientes pilotos de Mirage, disfarçados de ricos homens de negócio árabes.

Indo a caminho de Mumbai, na Índia, a aeronave passou a cerca de 30km/oeste de Sirri – bem perto o suficiente para que um dos iraquianos fizesse fotos utilizando uma câmera de mão, com uma poderosa lente zoom. E os espiões repetiram o procedimento no caminho de volta a Amman, um dia depois.

Uma ordem urgente

 As fotos resultantes permitiram aos pilotos de Mirage do Esquadrão 81 lançar um reide bem sucedido contra Sirri em 12 de agosto de 1986. Mas, além disso, a operação (com o SII) inspirou novas ideias no topo de comando da Força Aérea iraquiana.

Uma ideia era utilizar um jato executivo modificado para chegar longe no Golfo Pérsico, sem ser perturbado pelos interceptadores iranianos. Além disso, os iraquianos previam que uma aeronave maior poderia levar até dois AM.39 Exocet e assim poderia infligir um golpe ainda mais duro contra os superpetroleiros sendo carregados de óleo cru no terminal iraniano.

Isto era algo visto como muito importante pelos planejadores iraquianos, uma vez que a única variante do Mirage F,1EQ operativa com o Exocet disponível então na FAIr era o F.1EQ-5, e este podia levar um único míssil.

E a experiência dos iraquianos utilizando os AM.39 contra os petroleiros, no período de 1980 a 1986, havia mostrado que estes grandes navios não eram apenas altamente resistentes (apenas quatro destes mercantes foram   de fato afundados pelos Exocet em oito anos de guerra) mas que também um grande número de Exocet havia falhado pelas contramedidas iranianas, mal funcionamento ou não haviam detonado, mesmo quando atingiam seus alvos.

Alegando que precisavam de uma aeronave de treino para seus pilotos de Mirage F.1EQ-5, os iraquianos procuraram a firma francesa Thales (contratada primária dos iraquianos para todos seus contratos de Mirage), solicitando que esta modificasse o Falcon 50 YI-ALE com o radar e o sistema de armas daquela sua variante do Mirage.

“Deixem a ave voar!”

 Sempre ansiosos em agradar aquele que era então um cliente principal para seus sistemas de armas, os franceses trabalharam rápido, e todo o trabalho de conversão estava completo em janeiro de 1987.

Os testes de voo iniciais com os pilotos iraquianos revelaram uma série de falhas, mas os franceses correram a retificar todas estas e o YI-ALE foi entregue de volta ao Iraque em 9 de fevereiro de 1987, via Córsega, sul da Itália, Grécia e Turquia.

Entre os pilotos do Esquadrão 81 (a única unidade da FAIr voando os F.1EQ-5s equipados com os Exocet), o Falcon 50 passou a ser conhecido como “Susanna.”

Foram realizados voos de treino adicionais e, na sequência destes, Susanna foi preparada para o seu teste definitivo – sua primeira missão de combate. Ao alvorecer de 17 de maio de 1987, um dos pilotos do Esquadrão 81 (vamos chamá-lo de “Maj. Muhammad”, por conveniência, uma vez que a atual situação do Iraque torna preferível a não divulgação de sua identidade), voou com Susanna da Base Aérea Saddam (mais conhecida nos EUA como Qarayyah West) para a de Wahda (antiga base de Shoibiyah da Força Aérea britânica, a RAF), a 45km/sudeste de Basra.

Lá, os armeiros instalaram dois AM.39 Exocet em Susanna.

Uma vez a aeronave pronta, a tripulação iniciou uma longa espera pelas ordens seguintes. Pouco depois do anoitecer, o QG de Wahda recebeu uma mensagem em código – “Deixem a ave voar!”, que autorizava a tripulação a voar uma missão operacional no Golfo Pérsico – no mesmo padrão que os Mirage F.1EQ-5 iraquianos costumavam fazer.

Voando para o sul numa noite negra, o Maj. Mohammad adotou o curso padrão que os pilotos iraquianos chamavam de “Mirage Alley”, um corredor aéreo fictício paralelo aos litorais do Kuwait e da Arábia Saudita, que seguia até o sul, num ponto ao norte de Bahrain, aonde ocorria uma curva à esquerda, em 90º, na direção do Irã.

Aproximando-se da chamada “zona de exclusão” criada pelo Iraque, Mohammad checou novamente a sua posição num mapa e então ativou o radar, iniciando uma busca por qualquer grande alvo de superfície. E sem grande demora, um “blip” apareceu na sua tela de radar. Pela sua experiência, ele podia dizer que era um alvo naval de médio porte, navegando no limite da zona proibida, e parecendo estar para penetrar nesta a qualquer instante.

Mohammad concluiu que o capitão do navio em questão o conduzia de modo inteligente, buscando navegar ao longo do limite da zona de exclusão para evitar se ver sob ataque. E foi isso que levou o major a decidir engaja-lo.

Seus Exocet já estavam “quentes” – ligados e recebendo os dados de alvo do radar de Susanna e de seu sistema de armas; e portanto, prontos. Mohammad levantou a trava no manche e pressionou o gatilho vermelho. Ele imediatamente sentiu o pesado míssil separando-se do pilone sob a asa, e ouviu o som do motor-foguete. Uma luz brilhante apareceu diante da aeronave, seguindo à frente e curvando-se suavemente para o alvo.

Naquela ocasião, Mohammad era já um experiente vetrano com mais de 1.000 horas em combate, a maioria no Mirage F.1EQ. Ele já havia disparado dúzias de Exocet em ação real, também à noite, e assim aquela missão não lhe era tão diferente de experiências anteriores.

O que era diferente sobre aquela missão, entretanto, era que Susanna estava carregando dois mísseis. Deste modo, Mohammad repetiu o procedimento de alvo e disparou o outro AM.39, antes de fazer uma forte curva à esquerda, retornando num curso para o norte, em direção à segurança da Base Aérea de Wahda.

Post scriptum

 O Maj. Mohammad não sabia que havia lançado dois mísseis contra um navio de guerra dos Estados Unidos. Também não sabia que seu voo estava sendo monitorado por um avião de alerta antecipado por radar (AWACS) E-3A Sentry, da Força Aérea norte-americana (USAF, US Air Force), voando sobre a Arábia Saudita, cuja tripulação, ao saber do ataque contra o Stark, solicitou que dois caças F-15 Eagle da Real Força Aérea Saudita (RFAS) o interceptassem e forçassem a pousar – mas os sauditas recusaram o pedido.

Enquanto Mohammad continuou uma carreira de sucesso na FAIr, Susanna nunca voou em combate novamente. Embora os iraquianos suspeitassem que a Inteligência norte-americana soubesse de seu jato executivo modificado Falcon 50, que abrira um rombo numa bem protegida e bem armada fragata, matando 37 militares norte-americanos, eles nunca revelaram a sua existência, pois isto iria contradizer a versão oficial do incidente divulgada pelo Ministério de Relações Exteriores.

Em fins de 1987, os franceses iniciaram as entregas dos Mirage F.1EQ-6 ao Iraque. Esta era a primeira variante capaz de carregar dois Exocet. Um ano depois, o Falcon 50 modificado recebeu uma nova modernização, que compreendeu a instalação de um tanque de combustível adicional dentro da cabine e um ponto duro de fixação sob a fuselagem. Este último tornou o jato capaz de carregar o sistema francês de radar de varredura lateral Harold, alguns dos quais foram entregues no início de 1988 para os Mirage F.1EQ-6 iraquianos. Neste padrão, Susanna tornou-se capaz de chegar até o leste do Mediterrâneo, quando operando à partir da Base Aérea de Saddam, e carregar dois Exocets numa missão de ataque ou de reconhecimento.

Entretanto, as tripulações do Esquadrão 81 nunca voariam uma tal missão. Durante a Guerra do Golfo de 1991, a Força Aérea do Iraque decidiu enviar Susanna para longe, a fim de preservar tal preciosa aeronave. Assim, Susanna voou para o Irã … e não foi mais vista publicamente desde então.

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O USS Stark, visto do USS Conyngham, na manhã de 18 de maio de 1987, bastante adernado à bombordo. (foto da USS Conyngham Association, via Autor)

Nesta foto, pode-se ver em detalhe os danos causados no casco e na ponte de comando do USS Stark. (foto da U.S. Navy, via Autor)

Um Mirage F.1EQ-5 (serial 4560), visto em testes pré-entrega, ainda na França. É digno de nota o AM.39 Exocet pintado de branco, com seu buscador em laranja. (foto da AMD, via Autor)

Um especialista francês e um técnico da Força Aérea iraquiana junto de um AM.39 Exocet instalado na linha central, sob a fuselagem de um Mirage F.1EQ-5, na Base Aérea de Saddam, em 1984. (foto da Coleção de Hugues Deguillebon, via Autor)

A última aparição de Susanna. Em 1989, a TV Nacional do Iraque levou ao ar um curto documentário mostrando um Falcon 50 modificado, incluindo o nariz com o radar Cyrano IVM, o pod na linha central, sob a fuselagem, e um Exocet sob cada asa. (still da TV iraquiana, via Autor)

 

 

 

 

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