AVIAÇÃO MILITAR & DEFESA DOS ARQUIVOS DE ASAS

Mundo se despede de herói da Segunda Guerra Mundial

Rara foto em voo dos Typhoon do 247.Squadron, em plena missão de guerra Foto: Via M.J. Cheyney

John Cheyney era um menino de 15 anos quando, em setembro de 1939, viu o seu país entrar em guerra contra os nazistas. Sofreu com sua família quando as bombas de Hitler explodirem na sua cidade, mas até o fim do conflito ele iria ajudar a vencer o inimigo. Cinco anos depois, estava a bordo de caças da Royal Air Force para proteger sua família, seu país, o mundo. No último dia 24 de fevereiro, o herói britânico alçou seu último voo.

John Cheyney (ao centro) com os pesquisadores Ian Comber e Claudio Lucchesi

A incrível história de John Cheyney foi contada em uma reportagem especial da edição 42 da Revista ASAS. Confira abaixo:

Piloto de Typhoon

Poucos aviadores militares puderam sentir, como civis, a fúria da guerra aérea e, no mesmo conflito, tornarem-se protagonistas desta. Mas esta foi a trajetória de um inglês que, da adolescência vendo a Luftwaffe sobre Londres, passou para o cockpit de um Hawker Typhoon na libertação da Europa do jugo nazista. Conheça, com Cláudio Lucchesi, as aventuras de “Bill” Cheyney.

E como era voar o Typhoon?

“O Typhoon era o diabo!”

Maurice John Cheyney nasceu em Londres, em 1924. Quando a guerra foi declarada, em setembro de 1939, tinha 15 anos “e meio”, e além de estudar, trabalhava como “aprendiz” na famosa loja de departamentos Harrod’s – um dos cartões-postais da capital britânica. Com a nova situação, assim que tornou-se possível, tomou a iniciativa de alistar-se no treinamento para ser servir na RAF[1] – “porque se era para eu ir à guerra, queria ir como piloto!” Antes de ter essa chance, porém, iria conhecer a guerra aérea numa posição muito diferente – como civil, morando e trabalhando em Londres, quando esta se tornou o principal alvo da fúria do ditador nazista Adolf Hitler.

Homens do 247.Squadron junto do Hawker Typhoon de código “ZY£B” (C/n PD495). “Bill” Cheyney voou este aparelho diversas vezes e foi nele que foi abatido, em 24 de janeiro de 1945.

Em agosto de 1940, depois de um crescente de combates sobre o Canal da Mancha desde o fim da Batalha da França, a força aérea da Alemanha iniciou sua campanha contra o Reino Unido, visando destruir a RAF (ou incapacita-la o suficiente), e assim “pavimentar” o terreno para a invasão das Ilhas Britânicas pelas hordas nazistas. Esta luta de vida e morte entre a então toda-poderosa Luftwaffe[2] passou à História como a Batalha da Inglaterra. E, durante ela, Cheyney estava exatamente num dos alvos preferenciais dos bombardeiros alemães – Londres.

“Eu tinha então 16 anos ‘e meio’. Eu via as esteiras de condensação, nos céus sobre a cidade, das aeronaves que nos atacavam, e das nossas que as enfrentavam. Ouvia as sirenes de alarme dos ataques aéreos. Mas era um garoto, não tinha idéia da importância do que estava acontecendo. É claro que sabia que algo estava acontecendo. No ar, víamos que a luta estava por toda parte. Mas realmente não tinha noção da relevância do momento. Víamos os combates todos os dias. Aquele foi um belo verão, ensolarado. Mas não pensava que travávamos uma batalha de sobrevivência. Em 15 de setembro, os alemães bombardearam Londres pesadamente. A cidade foi inteiramente coberta pela fumaça. Houve muitos incêndios. Eu já fazia a instrução inicial para entrar na RAF. Aprendíamos tudo sobre a força aérea, antes de ingressarmos de fato nela. Eu ia de bicicleta para o centro de instrução, que era uma organização de juventude.

E eu também ainda estava lá, em Londres, quando os alemães mudaram sua tática e passaram a nos bombardear à noite (o período que os londrinos batizaram como “The Blitz”). Eu vi tudo aquilo. Porque eu só saí de Londres em dezembro de 1942.”

Depois de lançar seus foguetes, um Typhoon do 247.Squadron inicia a recuperação do mergulho. Uma das armas (na parte inferior da foto) já atingiu em cheio o alvo – uma linha férrea. (Via M.J. Cheyney)

Tornando-se um piloto de combate

Passando no exame médico, aos 18 anos, foi enviado à universidade da força aérea, em Oxford. Ali, era realizada uma severa seleção, que incluía não apenas um novo exame médico, mas toda uma bateria de testes de aptidão, psicológicos e outros. “Uma vez aceito (como cadete), mesmo assim tive de esperar, até dezembro de 1942, quando então fui chamado.” Inicialmente, seguiu para uma unidade da RAF na própria Londres, e dali para Newquay, no litoral de Cornwall, para o curso básico (Initial Training Wing) – “que incluía matemática básica de navegação aérea, simbologias, reconhecimento de aeronaves”. Depois, foi para a Grading School (Coventry), onde começou os vôos nos biplanos de Havilland Tiger Moth (na época, o treinador básico padrão da RAF); indo então para Manchester, onde graduou-se como piloto militar, navegador e bombardeador[3].

Na época, inclusive como medida para “proteger” seus cadetes de encontros prematuros (e geralmente, fatais) com incursores alemães nos céus das Ilhas Britânicas, a maior parte da instrução avançada e operacional era feita “do outro lado do Atlântico”. Assim, de Manchester, Cheyney viajou para Greenock (Escócia), onde embarcou no transatlântico Queen Elisabeth I para o Canadá – mais exatamente, Monckton. Desta, foi para a base de treinamento canadense de Assinaboia, onde fez o curso de vôo elementar, no Fairchild PT-19 Cornell, e concluindo esta etapa, foi para o curso avançado, em Weyburn, com os North American AT-6 Harvard. A última parte deste era feita em Calgary. “E ali recebi as minhas ‘wings’, graduando-me como oficial-piloto.”

“Bill” Cheyney em Weyburn, posando em grupo diante de um North American AT-6 Harvard. Ele é o sexto, da esquerda para a direita. (Arquivo pessoal de M.J. Cheyney)

“Retornei a Monckton, supostamente para iniciar meu retorno à Inglaterra. Mas ali eles selecionaram quatro de nós para irem para a 1.OTU[4], que ficava no norte do Canadá, em Bagotville, para voarmos os caças Hawker Hurricane. Ali, todos os instrutores, canadenses, eram pilotos veteranos, com experiência de combates reais na Europa. Voei o Hurricane lá, em condições de neve muito, muito profunda.”

O passo seguinte foi o “OTU avançado”, em Greenwood (Nova Escócia); “um curso muito duro de duas semanas”, e depois para o “curso do Exército”, também de duas semanas, em Toronto – “dirigindo tanques, atirando com metralhadoras, disparando morteiros, etc – e bebendo muito no rancho”. Enfim considerado pronto para o combate, Cheyney foi para Halifax, onde embarcou de volta ao Reino Unido, num navio “que fez a amarga rota do Norte, ‘pulando’ dos submarinos inimigos e tendo que dar conta de uns 200 aviadores australianos ‘amotinados’ – que grupo!”.

De volta para casa

“Quando eu voltei do Canadá, e fui visitar minha família, nós morávamos nos subúrbios de Londres, vi como as casas haviam sido bombardeadas. As janelas estavam travadas, para permanecerem juntas. Era setembro de 1944 (quatro anos depois da Batalha da Inglaterra, que Cheyney assistira como adolescente), e os ataques eram então feitos pelas bombas-voadoras alemãs V-1, que nós chamávamos de ‘doodlebugs’. Na casa de minha mãe havia um abrigo subterrâneo no jardim, fornecido pelo governo para que as pessoas não dormissem dentro das casas. Minha mãe dormia ali, e eu me acomodei num espaço abaixo. Estas ‘doodlebugs’ faziam um grande barulho (de seus motores) e então este cessava por completo – porque a bomba estava caindo. E então você esperava e ouvia a explosão. Assim foi minha primeira noite em casa, quando voltei do Canadá.

Na manhã, falei à minha mãe que iria para o interior, para a casa de minhas irmãs. Não era muito longe de Londres e, de fato, ficava bem na rota das ‘doodlebugs’, mas não havia tanto problema, porque estas estavam programadas para voar até Londres, a capital era o alvo. E então eu fiquei ali, no campo. Mais tarde, quando voltei para visitar minha família depois da instrução com o Spitfire, os alemães haviam começado os ataques com os mísseis V-2. Estes eram foguetes, e deles você não ouvia nada antes. Até vir uma tremenda explosão. Pensei – ‘tenho de ir embora daqui. Eu não posso viver assim.’ Mas Londres tinha de viver com aquilo. Seus moradores, minha mãe, tinham de viver com aquilo. E quando fomos ao combate, buscamos fazer algo por estas pessoas. Destruir, caçar estas V-1 e V-2.”

Depois do reencontro com a família, Cheyney foi para uma OTU em Kirton on Lindsay, voar em caças Spitfire Mk.V (“aqueles com as pontas das asas ‘cortadas’”). Embora o modelo já houvesse então se coberto de glórias nos duelos com a Luftwaffe, Cheyney confessa que “eu tinha preferência pelos aviões da Hawker. Havia sido num deles (o Hurricane) que eu começara a voar como piloto de combate. Mas eu me apaixonei pelo Spitfire Mk.V, com suas asas ‘aparadas’. Era uma máquina maravilhosa. Eu tive um curso como líder de caça[5], e nele voei o Spitfire Mk.IX; do qual também gostei. Com estes, voamos utilizando os tanques (descartáveis) de longo alcance. Porém, quando retornei à Inglaterra depois da guerra, e fui reincorporado ao meu esquadrão, voei o Hawker Tempest II – uma beleza de aeronave; impressionante, inesquecível. Asas ‘aparadas’, o poderoso motor Bristol Centaur V (2.520hp). Era veloz, silencioso (para um caça da época). Uma máquina muito bela.”  

“Este também foi um curso muito ‘duro’, com instrução de vôos noturnos, de navegação de longo curso, e outros pontos. E, ao concluí-lo, fui selecionado para voar (em combate) o caça-bombardeiro Hawker Typhoon. Éramos em seis e viajamos de volta à Londres, e dali nos enviaram para Acton, onde ficava a fábrica dos motores do Typhoon, os Napier Sabre. Era um dos motores mais potentes que existiam (2.180hp), mas também um motor muito difícil.”

Velocidade e potência – totalmente armado, um Hawker Typhoon do 247.Squadron decola para uma missão em fevereiro de 1945. (Via M.J. Cheyney)

Domando a fera

E como era voar o Typhoon?

“O Typhoon era o diabo!

Ele tirou as vidas de muitos pilotos, antes que se soubesse o modo correto de lidar com ele. Era muito potente! O motor era muito difícil de se controlar. Ele não taxiava – queria ir para cima, queria decolar! Muitas vezes, o motor ‘cortava’, simplesmente. Você decolava, subia, e o motor parava. Aconteceu uma vez comigo, mas eu consegui religar o motor. Tive sorte! Mas tive de abortar a missão e voltar.

Mas era também um avião apaixonante! Era uma grande máquina, pesada, que acomodava o novo e radical motor Napier Sabre, de 24 cilindros, com mais de 2.000hp; e um armamento interno de quatro canhões de 20mm, mais oito foguetes de 60 libras sob as asas. Na decolagem, tínhamos de usar as máscaras de oxigênio, por causa dos gases que vazavam do monstruoso motor – um problema que, até ser descoberto, foi o causador das fatalidades de incontáveis pilotos.

Mas o bruto era veloz e era comum que num mergulho você atingisse 500 milhas por hora (mais de 800km/h) num instante, e as vibrações podiam começar, dependendo da altitude em que você estivesse, e houve perdas por isso. Nós não sabíamos nada da velocidade do som. Não sabíamos que aquilo nos mergulhos era o chamado estol de compressibilidade, pela alta velocidade subsônica (a aeronave quase atingia a chamada velocidade transônica).

Mas depois de apenas umas horas de vôo, criávamos confiança e todos nós o amávamos; especialmente os ex-pilotos de Hurricane, como eu próprio, que estavam acostumados às características dos Hawker, como o pesado e robusto armamento – um matador.

O Typhoon e mais tarde o Tempest II foram meus aviões preferidos.”

Cena no aeródromo de Eindhoven depois do ataque da Luftwaffe em 1º de janeiro de 1945. (Via M.J. Cheyney)

247.Squadron

“Então, fomos para Aston Down, para a conversão no Typhoon.

Então, lá estava eu, naquele outono úmido, enevoado e frio, pronto para um mês de conversão no Typhoon – ataques com foguetes, vôo em formação, manobras acrobáticas, e muitos vôos rasantes. Nós ficamos acomodados em cabanas, seis oficiais em cada, dividindo os serviços de um ordenança, que arrumava as camas, limpava uniformes e botas, e providenciava o chá logo no alvorecer. As cabanas tinham correntes de ar, eram frias e úmidas, com um fogão no centro, que dava algum calor – de qualquer forma, desconfortáveis. O ‘rancho’, como tantos em tempos de guerra, era muito interessante; tinha aquele lampejo de glamour misterioso, oficiais de muitos países, de muitos modos de vida, em cujo centro se destacava o magnetismo de nosso capitão de grupo, e seu núcleo de veteranos, muitos condecorados, instrutores. Tudo tinha aquele peculiar clima de combate, fatigado, assombrado mas estranhamente penetrante. O meu comandante de vôo era ‘Blackie’ Schwartz; um sujeito de boa aparência de Cornwall; magro e trigueiro; espírito bucaneiro, roupa de combate surrada, que passava a maior parte do tempo jogando pôquer com seus oficiais, mas que estava sempre alerta.

Eu tinha lido todo o manual do avião, mas a realidade me socou quando fui para minha primeira experiência de vôo e vi um Typhoon vindo para pouso com apenas um dos trens de pouso baixados; recebendo luz vermelha da sinalização e rugindo para nova tentativa. Veio de novo, o mesmo problema, e ao tentar arremeter novamente, desapareceu num vale, e houve uma apavorante explosão. Schwartz avisou-me para nunca tentar pousar com apenas uma perna do trem de pouso baixada; que era melhor então vir pra terra com todo o trem recolhido. E nenhuma outra palavra desse assunto foi dita…

Um dos Hawker Hurricane do 1.OTU, em Bagotville, Canadá. (Arquivo pessoal de M.J. Cheyney)

No dia seguinte, apresentei-me para voar, ‘Blackie’ Schwartz olhou-me de um jeito meio caprichoso e me disse para embarcar no ‘Z’, de ‘Zebra’, ter certeza de que estava com o rádio operacional, tomar cuidado com os vícios (da aeronave), e então, cigarro na boca, retornou ao seu jogo de pôquer, terminado. E eu fui sem olhar para trás.

No meu primeiro vôo, fiquei sem contato de rádio e me perdi. Acabei pousando num aeródromo indicado em nosso plano de vôo como ‘don’t land here’ (não pouse aqui). A pista era enlameada. Pousei e derrapei. O Typhoon era uma máquina muito difícil. Grande, duro e potente, muito potente. Eu derrapei mas consegui parar antes de atingir outra aeronave.”

Apesar desta primeira experiência “desagradável” com o poderoso avião da Hawker, Cheyney terminou o curso dem de duas semanas,hadoras, o morteirosm instrutores realmente muito exigentes”ores eram pilotos veteranos, com experierican T-6 adaptação e foi enviado para Tangmere, e então integrou-se à unidade na qual iria para o combate – o 247.Squadron, da RAF.

A unidade tinha suas raízes no 247.Squadron formado logo após a criação da força aérea britânica, em abril de 1918; mas desmobilizado menos de um ano depois, em janeiro de 1919. Pouco mais de 20 anos depois, quando as sombras da invasão nazista se lançavam sobre as Ilhas Britânicas, em agosto de 1940, foi formado o “novo” 247.Squadron (surgida à partir da “separação” de uma das esquadrilhas do 152.Squadron) e é sintomático da situação de crise vivida naquele momento o fato que a recém-criada unidade de caça tenha sido inicialmente equipada com os obsoletos biplanos Gloster Gladiator (de fato, a unidade foi o único esquadrão da RAF a voar o tipo durante a Batalha da Inglaterra). A primeira base foi Roborough, perto de Plymouth, com a unidade fazendo parte do 10.(Fighter) Group. Mais tarde, o 247.Squadron seria reequipado com o Hawker Hurricane; porém, embora este fosse muito superior aos Gladiator, já não era um caça “de primeira linha” da RAF, como o Spitfire; e o esquadrão só viria a receber um modelo realmente “de primeira” em 1943, ao ser reequipado com o então novíssimo Hawker Typhoon. Com este, a função da unidade se alterou, passando da missão de defesa e superioridade aérea para a de apoio cerrado e ataque tático. E o esquadrão passou a integrar o 83.Group da 2nd Tactical Air Force.

Quando Cheyney chegou no 247.Squadron, este já se deslocara para a Europa continental, em território já libertado. De fato, sua primeira saída de combate, em 24 de dezembro de 1944, foi na Batalha das Ardenas, a frustrada última ofensiva alemã no oeste. O esquadrão estava baseado então em Eindhoven (Holanda), e os pilotos foram acordados às 06h45. Às 08h40 já estavam no ar, mas não conseguiram encontrar quaisquer alvos.  Mais tarde, antes do almoço, decolou uma segunda esquadrilha, liderada pelo fg-off. Magee, na qual estava Cheyney, e ela foi orientada para a área de Stavelot, onde haveria uma concentração de tanques alemães, mas uma vez ali, os pilotos não encontraram os alvos. Buscando verificar melhor, a “Red Section” da formação mergulhou, baixando de altitude, o que resultou nos Typhoon sendo “recebidos” por uma bem nutrida flak (artilharia antiaérea alemã) pesada. “O ‘número 2’ (fg.-off. ‘Steve’ stevenson) foi atingido por um tiro direto de 88mm e explodiu no ar. Então nós atacamos o que achamos – alguns tanques e diversos carros, carros alemães. Naquela primeira missão, não consegui saber bem o que estava ocorrendo. Havia neve, neblina. O tempo não estava bom.”

Dias depois, em 29 de dezembro, Cheyney estava num dos oito Typhoon que decolaram às 10h59, com tanques sobressalentes de longo alcance, sob o comando de Magee. A missão era de ataque de oportunidade na área de Hameln-Steinhuder Lake-Osnabrück, e assim que os aviões desceram da altitude “de cruzeiro” (entre 6.000-9.000m), puderam localizar um grande variedade de alvos – notadamente diversos trens entre Osnabrück e Hannover. Destruíram cinco locomotivas (outras quatro, danificadas) e 16 vagões; e também atingiram diversas instalações, incluindo o que pareceu ser uma base de lançamento de foguetes V-2; um aeródromo em Bohmte (que foi deixado em chamas) e um campo militar. Todos os Typhoon retornaram sem problemas (apenas o de Mickey Magee apresentou alguns danos de artilharia antiaérea leve).

Os jovens pilotos da RAF em Bagotville posam diante de um Hawker Hurricane. Cheyney é o quinto da esquerda para direita, na primeira fileira em cima, de pé. (Arquivo pessoal de M.J. Cheyney)

Nestas missões, Cheyney recorda que os ataques com os foguetes não-guiados exigiam que se tentasse ter a maior velocidade possível, antes de disparar tais armas, pois isto melhorava a precisão. “Se você lançasse sem muita velocidade, o foguete fazia um movimento de ‘cair’ da asa antes de seguir à frente, e perdia muita precisão. E também também lançar o mais próximo possível do alvo. Contra a grande maioria dos alvos terrestres, os canhões de 20mm também eram muito efetivos.”

Falando sobre os ataques contra os trens inimigos, Cheyney comenta que na época em que fazia tais missões, não tinha muito conhecimento de seus alvos. “Tudo acontecia em segundos, você via o trem, mas de longe, ou nos segundos do mergulho. Não via os destalhes.” Só mais tarde, ao ser abatido e feito prisioneiro, é que pôde ver tais “alvos” de perto, e então perceber o perigo a que ele e seus colegas se expunham nestes ataques. “A maioria dos trens alemães tinha diversos vagões especiais de flak, apinhados por armas de diversos calibres. Eram alvos muito bem defendidos. Alvos muito perigosos, na verdade.”

No dia 30, Cheyney e alguns pilotos foram acordados às 05h30. Na tarde da véspera, sete Typhoon haviam tido de pousar em Volkel depois que o mau tempo “fechou” Eindhoven, e agora os mal-dormidos aviadores tinham ordens de seguir por terra para lá e trazer de volta as aeronaves, na primeira luz da manhã, embora o tempo continuasse ruim – de fato, por causa disso, puderam retornar para Eindhoven apenas quatro aparelhos, neste dia.

Operação Bodenplatte

Durante todas estas ações, Cheyney nunca enfrentou no ar a Luftwaffe.

“Nós não tínhamos contato com os caças inimigos. Isto ocorria mais com as unidades de caças Tempest Mk.V. Mas era raro. A Luftwaffe estava cada vez mais fraca. Sua última grande ação foi o ataque de 1º de janeiro de 1945 contra nossas bases (a Operação Bodenplatte). Naquele dia, eu estava pronto para sair para uma missão. Já estava com meu pára-quedas, passara na sala de controle, havíamos tido o briefing, tomara uma xícara de chá. E então eles vieram, voando realmente muito baixo.”

Mais tarde, ele narraria à sua mãe os detalhes do ataque germânico, em carta:

“O dia 1º de janeiro de 1945 amanheceu com visibilidade perfeita, num céu sem nuvens. Eu estava no grupo para a primeira operação do dia. (…) Estava junto com outros colegas, fumando um último cigarro em nossa cabana, quando houve uma série de terríveis explosões e todos se jogaram no chão. Então começou – disparos de canhões e de metralhadoras golpearam os aviões, cabanas, depósitos de combustível e homens no aeródromo. Havia cerca de 150 Bf-109, Fw-190 e Me-262 circulando, vindo em direção de um alvo, subindo e vindo de novo. Havia fogo por toda parte e os sons eram terríveis.

Usei um galão portátil como um parco abrigo e ‘Pinky’, um canadense, estava gritando para que eu usasse minha pistola de .38pol e atirasse nos aviões inimigos (o que Cheyney de fato fez). Colegas estavam mergulhando ao chão, buscando a proteção das trincheiras de abrigo. Um amigo meu, Ginger Horne, entrou de cabeça em 1,20m de água ao mergulhar numa delas. Eu nunca tinha visto meus amigos apavorados dessa forma antes, especialmente estes jovens camaradas que estavam sempre prontos para tudo e eram capazes de desafiar qualquer barragem de flak para atingir seus alvos. (…) Meus próprios pensamentos tornaram-se simples e pensei que seria morto, e resignei-me. Então um disparo de 20mm veio bem através da porta aberta de nossa cabana, e uma série de explosões ricochetearam numa cabana, seguidos de um rugido, e um último inimigo passou sobre nossas cabeças.

Os quatro, incluindo eu próprio, que haviam restado junto à cabana dos pilotos levantaram-se do chão, as faces lívidas, e olharam-se um ao outro de um jeito atordoado, e então fomos para fora.

Os aviões sobreviventes de três esquadrilhas completas, duramente atingidas pelo inimigo, estavam diante de nossos rostos. Apenas uns 15, de um total de mais de 150 aeronaves que havia no aeródromo. Aviões queimavam na pista, com pilotos curvados e mortos. Spitfire virados de dorso, com os trens de pouso para cima, que haviam tentado decolar e engajar o inimigo. Os rostos dos pilotos ainda tinham uma expressão sinistra. E continuavam explosões e explosões, que nos jogavam no solo castigado a cada cinco minutos, vindas dos depósitos de bombas.”

O ataque alemão em Eindhoven, que pareceu estender-se por uma eternidade, durara 23 minutos e meio. Porém, apesar da carnificina, na tarde daquele mesmo dia, Cheyney e outros já estavam de volta aos céus. “Meu avião, naquele dia, tinha buracos de projéteis, tinha sido acertado na manhã, mas podia voar.” Na verdade, como os Typhoon do 247.Squadron estavam estacionados “espremidos” entre os aviões dos esquadrões 137 e 181, haviam tido muito mais sorte que estes – que tiveram boa parte de seus aparelhos colocados fora de ação. Assim, contando com o de Cheyney, decolaram seis Typhoon do 247.Squadron, sua principal missão sendo mostrar aos alemães que a Operação Bodenplatte, na qual haviam depositado tantas esperanças, não havia paralisado o poderio aéreo dos Aliados. E pior, havia custado perdas irreparáveis para a Luftwaffe, que nunca mais conseguiria montar uma grande operação aérea[6].

Fogo amigo

Depois da Bodenplatte, os caças da Luftwaffe tornaram-se ainda mais raros. “Nós dificilmente os víamos. Os únicos mais presentes eram os jatos, os Messerschmitt Me-262. Mas nunca muitos. Em grupos pequenos. Nossos Tempest Mk.V os enfrentavam com sucesso, não nós.”

Em 14 de janeiro, decolando às 13h00, Cheyney estava numa formação de Typhoon liderada pelo wg.-cmdr. North-Lewis, que se uniu a um grupo similar do 182.Squadron (sqd.-ldr. Gray), num esforço conjunto para atacar um pátio ferroviário que servia a base de lançamento de foguetes V-2 em Zwolle. A rota para o alvo foi tranqüila, as defesas germânicas no Reno permaneceram em silêncio, mas sobre o alvo, uma formação de nuvens tirava a visibilidade. Porém, num golpe de sorte, os britânicos conseguiram ver, numa ‘fresta” na cobertura das nuvens, exatamente o seu alvo. O ataque começou de uma altitude de 3.000m, e foi um sucesso completo, com a destruição do pátio ferroviário e também de 50 vagões.

Entretanto, já no caminho de retorno, os Typhoon foram surpreendidos pela aparição súbita de dois caças norte-americanos P-47 Thunderbolt, prateados, que mergulharam de uma nuvem com suas armas disparando. Os aparelhos visaram os Typhoon da “Blue Section”, que tentaram escapar. Por causa de sua posição, entretanto, o avião do flt.-sgt. “Ginger” Horn foi mais lento ao evadir-se, sendo duramente atingido. Diante do olhar de Cheyney e de seus colegas, o motor de Horn falhou. Enquanto os Thunderbolt se retiravam, depois de seu intempestivo ataque; o piloto inglês conseguiu retomar controle do aparelho, e iniciou uma descida em planeio, visando pousar em território aliado. Ele conseguiu, de fato, atingir as linhas amigas a oeste do Reno mas, ao tentar fazer um pouso de emergência nas margens de um dique, seu Typhoon explodiu numa bola de fogo. “Ginger” Horn não sobreviveu.

Lembrando-se do triste dia, Cheyney comenta que “era sempre necessário tomar muito cuidado com os norte-americanos. Eles atacavam qualquer um. Eram muito perigosos”.

Abatido

Mas a sorte de Cheyney acabou em 24 de janeiro de 1945.

Naquele dia, ele e seus companheiros foram acordados para uma “surtida louca” (mad dash), o que significava sair da cama e estar no ar em 20 minutos. Assim, às 8h36, os Typhoon estavam no ar, sob comando do wing-officer Croft, numa das usuais missões de ataque de oportunidade, na área de Munique. O alvo foi um grande trem, de cerca de 25 vagões, que ao perceber os caças-bombardeiros tentou acelerar e encontrar proteção na cidade mais próxima. Em vão. O primeiro ataque atingiu a via férrea à frente, parando a composição. Em seguida, os ataques subseqüentes destruíram a locomotiva e diversos vagões. Saindo deste segundo ataque, Cheyney avisou seus colegas que sua hélice estava super acelerada, provavelmente por alguma avaria causada pela flak leve do próprio trem. Então seus colegas viram o motor travar, e o Typhoon de Cheyney descer e desaparecer numa nuvem.

Ele iria conseguir controlar o aparelho e fazer um pouso forçado a leste da cidadezinha de Borken; mas no pouso, o aparelho atingiu algumas árvores. Cheyney perdeu a consciência, e foi retirado do Typhoon por dois soldados alemães, que o levaram para uma casa de fazenda próxima e lhe deram uma bebida quente para se recuperar. Então, “levaram-me para um hospital em Munique, como prisioneiro. Estávamos em 1945, e os alemães estavam tendo tempos muito duros. Não gostavam de nós, é lógico. Seu país estava sendo bombardeado, atacado por nós. Enquanto me levavam, atravessamos um vilarejo, e um velho veio e chutou-me. Então apareceram soldados da SS, em uniforme negro, numa moto – eu pensei, vão me executar. Mas não, levaram-me para o hospital. Este era bem pequeno, e trataram-me muito bem. Mas, lógico, havia um guarda me vigiando todo o tempo, dentro do quarto. Conversei com ele. Acreditava que ainda iriam ganhar a guerra. Disse-lhe ‘seu idiota, nós já ganhamos’”.

Cheyney foi levado para um hospital maior, em Essen, onde ficou cerca de dez dias. Havia apenas um médico para todo o hospital; mas Cheyney foi muito bem tratado. As enfermeiras, que eram freiras, chegaram a levar-lhe rações extras, escondidas sob suas vestes. E os próprios militares também eram simpáticos, sendo que numa ocasião o piloto inglês foi levado para almoçar no rancho dos oficiais da Luftwaffe, no aeródromo militar próximo. Na noite daquele dia, porém, Cheyney foi embarcado num trem para Frankfurt, onde ficava o Dulag Luft[7] – o centro militar alemão onde eram interrogados os aviadores aliados capturados. “Quando cheguei na estação, dois guardas da Luftwaffe, muito velhos, vieram me pegar. As pessoas ao redor estavam muito hostis – a RAF bombardeara Frankfurt na noite anterior. Fui então levado para o Dulag Luft. Você era colocado numa pequena sala, e um oficial ficava tentando obter todas as informações possíveis. Fiquei ali por uns dez dias. Terrível. Não recebia muita comida, mas não era maltratado. Ficava trancado o tempo todo. Os interrogadores falavam um inglês perfeito.” Um dos que interrogaram Cheyney foi Hans Joachim Scharff – considerado o “mestre” dos interrogatórios, o melhor homem do Serviço de Inteligência da Luftwaffe para obter informações dos pilotos prisioneiros.

Num jornal inglês, após o fim da guerra, a foto do “mestre” do Dulag Luft, Hans Joachim Scharff, que interrogou Cheyney. (Arquivo pessoal de M.J. Cheyney)

Concluída sua “passagem” pelo Dulag Luft, o inglês teve o cabelo cortado, pôde lavar-se, e recebeu um uniforme cáqui de prisioneiro de guerra, e então seguiu para um campo de prisioneiros militares próximo de Nuremberg. A viagem de trem durou quatro dias, por causa dos ataques aéreos dos Aliados, e Cheyney era o único aviador inglês no vagão, “todos os outros eram norte-americanos, na maioria, tripulantes de bombardeiros”. No campo, ele e os outros podiam ver os bombardeios dos Aliados contra Nuremberg – “os Lancaster, da RAF, vinham de noite, e de dia, vinham os B-17 dos norte-americanos”. Por causa do avanço das tropas aliadas, em março, os prisioneiros foram retirados e levados em marcha para o sul, caminhando por duas semanas até um novo campo, próximo da fronteira com a Suiça, em Moosberg. Porém, cerca de 15 dias depois de chegarem, surgiu uma coluna de tanques norte-americanos – era a libertação!

Na paz

Livre, mas sem ordens oficiais, Cheyney se uniu ao seu antigo líder de esquadrão, Magee, e a um líder de um esquadrão norte-americano de Mustang, ambos também libertados em Moosberg. Arrumando um jipe, circularam pelos arredores buscando comida (“e o que mais encontrássemos de útil”), e acabaram por se “mudar” para um aeródromo abandonado da Luftwaffe (Cheyney e Magee de fato se acomodaram numa casa de fazenda, ao lado). “Então, um dia, surgiu um Dakota norte-americano, pousou e nos tirou dali.”

Cheyney iria passar por Paris e dali, voando num Lancaster, chegaria a Duxford, para enfim se reunir novamente ao seu esquadrão, em Chilbolton (Wiltshire), na Inglaterra. Sua primeira “missão” ao se reintegrar à RAF, porém, foi fazer vôos de translado de aeronaves espalhadas por todo o Reino Unido, naquele imediato pós-guerra – “sempre caças: Typhoon, Tempest, Spitfire, de todo tipo, durante dois meses”. No 247.Squadron, deliciou-se com os Tempest II, com os quais o esquadrão fôra reequipado em setembro de 1945. Pouco tempo depois, entretanto, seu 247.Squadron tornava-se o primeiro na RAF a ser equipado com os então novos caças a jato de Havilland Vampire, em abril de 1946. Cheyney, entretanto, não voou o Vampire por muito tempo. Indicado como ajudante de comando, foi para o 631.Squadron, em Llanbedr (País de Gales), que voava o Spitfire Mk.XVI, e pouco depois, para um esquadrão de cooperação com o Exército (Spitfire Mk.XI) e, enfim, para a Ilha de Sylt (Dinamarca), para voar os rebocadores de alvos Miles Martinet.

Em dezembro de 1946, Maurice John Cheyney dava baixa na RAF.

Acabaria se empregando no Lord Vestey Group, que possuía no Brasil o Frigorífico Anglo, e assim o ex-piloto de caça veio para o país, que acabaria adotando para viver o resto da vida. Aqui, conheceu em Barretos (SP), a jovem Betty Hincks, de família inglesa, com quem se casou e teve três filhas. Deixando o Anglo depois de vários anos, Cheyney (que sempre teve um grande talento ao escrever, com graça e criatividade) iria ingressar numa das maiores agências de publicidade atuantes no Brasil, a McCann Ericsson, onde ficou até se aposentar.

Hoje, tranqüilo em sua aposentadoria, seus olhos azuis brilhantes cintilam de modo especial ao recordar de seus vôos e de seu amado Typhoon. “A sensação quando você está ajustado com firmeza naquele apertado cockpit, confrontado com instrumentos, relógios, chaves e indicadores, com a mão esquerda enluvada no manete, controlando dois mil e quinhentos cavalos, a sensação da sustentação e a ascensão ao reino gélido do espaço, é impressionante. É só você, sozinho, fisicamente ameaçado pelos elementos hostis e, mais importante de tudo, com uma missão. O piloto de caça tem de ser um excêntrico!”

O autor gostaria de agradecer à Flávio F.C. Bierrenbach, piloto e ministro do Superior Tribunal Militar, sem cujo auxílio esta reportagem não teria sido possível.



[1] Royal Air Force, a força aérea britânica.

[2] Força aérea da Alemanha.

[3] Tripulante, nos bombardeiros, responsável pela mira e comando para o lançamento de bombas.

[4] Operational Training Unit, unidade de instrução operacional.

[5] Este foi feito no 631.Squadron, em Llanbedr.

[6] Para a Bodenplatte, a Luftwaffe mobilizou 1.035 aviões, que conseguiram destruir ou danificar 495 aeronaves dos Aliados. Porém, os próprios alemães perderam 280 aparelhos na operação, e tiveram 169 pilotos mortos ou desaparecidos – o maior número de perdas humanas da Luftwaffe num único dia, em toda a guerra.

[7] Oficialmente Durchgangslager der Luftwaffe, Campo de Trânsito da Luftwaffe.

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