AVIAÇÃO MILITAR & DEFESA

T-4, o Bombardeiro Mach 3 de Moscou

Da Redação

Ontem foi o 45º aniversário do primeiro voo de um dos programas de jatos militares mais extraordinários, e mais secretos, da antiga União Soviética. Exatamente, em 22 de agosto de 1972, subia aos céus o Sukhoi T-4 “Sotka”.

Nunca ouviu falar dele?

Não se envergonhe!

Apesar de todo o programa ter envolvido um esforço incrível de toda a indústria aeronáutica soviética, os serviços de Inteligência do Ocidente, incluindo todas as organizações do tipo dos Estados Unidos, só tomaram conhecimento do T-4 quando o único protótipo foi… para o museu!

Então, junte-se a nós e conheça esta história incrível!

Como dissemos, apesar de todos seus recursos de espionagem, os Estados Unidos e seus aliados só tomaram conhecimento do programa deste bombardeiro supersônico soviético após 1982, cerca de dez anos depois do seu primeiro, quando o protótipo da impressionante máquina passou a fazer parte da coleção do Museu da Força Aérea Soviética (hoje, Russa) em Monino, perto de Moscou! E foi necessário o fim da Guerra Fria para que o Ocidente descobrisse o que era de fato aquele avião – e o quão perto esteve de entrar em serviço!

Sua gênese começou no início dos anos 1960, quando o crescimento das forças-tarefas de grandes porta-aviões da US Navy (Marinha norte-americana) tornou-se uma ameaça real à União Soviética, surgindo daí o requerimento de um bombardeiro de longo alcance, com performance de Mach 3 (três vezes a velocidade do som!), capaz de varar as defesas de tais frotas e neutralizar os porta-aviões, utilizando como armas grandes mísseis com ogivas nucleares táticas. Ao contrário do gigantesco bombardeiro norte-americano North American XB-70 Walkyrie, também de Mach 3, já em desenvolvimento; o jato soviético visava ataques contra alvos não-estratégicos (tendo destaque, os superporta-aviões citados), usando mísseis com ogivas nucleares táticas ou de alto explosivo. Como missão secundária, utilizando “pacotes” de sensores, poderia atuar em reconhecimento estratégico. Para atingir a performance de Mach 3, sua estrutura seria em grande parte de titânio e de ligas especiais de alumínio, de alta resistência ao calor. Entre as propostas oferecidas pelos diferentes escritórios de projetos (OKB), acabou se destacando o chamado Projeto 100, da Sukhoi – o que levaria ao apelido do aparelho, “Sotka” (cem, em russo).

Na época, o OKB Tupolev já se consagrara como a grande “casa” dos bombardeiros soviéticos, como os Tu-16 e Tu-95, e o próprio Pavel Sukhoi havia sido assistente deste por muitos anos. Exatamente por isso, a seleção de seu projeto de bombardeiro causou evidente mal-estar, ao ponto de Tupolev ter alegado explicitamente, na reunião do Comitê Estatal de Aeronaves (GKAT), que o antigo assistente não seria capaz de dar conta do projeto de uma aeronave de tal porte e performance. “Sei disso porque ele foi meu aluno”, completou – apenas para ouvir de Sukhoi a resposta: “eu darei conta, porque, como você disse corretamente, eu fui seu aluno!”

O comitê acabou sagrando vencedora a proposta do Projeto 100, que oficialmente tornou-se o Sukhoi T-4 (o “T” vindo da inicial de asa em delta, em russo), mas mesmo alguns dos colaboradores próximos de Pavel Sukhoi duvidavam de se conseguir fazer tal aeronave. O projeto final estava concluído em 1964, definindo-se que os protótipos seriam construídos pela fábrica em Tushino, e apesar de todos os desafios, foi definida a expectativa do primeiro voo para 1968; e o mock-up em tamanho real foi apresentado à VVS em dezembro de 1966 – absolutamente dentro do cronograma. Foi então definida a motorização, com quatro dos turbojatos Kolesov RD36-41, permitindo ao T-4 uma velocidade máxima de 3.200km/h a 20.000m de altitude.

Para a concepção final das asas, como mostradas no mock-up, a equipe utilizara um caça Sukhoi Su-9 modificado em avião-laboratório (redesignado 100L), que fizera diversos voos durante 1966. E os parâmetros ousados do programa implicaram em diversas outras inovações, colocando o T-4 como o mais complexo e sofisticado jato de combate já projetado na URSS, até então.

Foram adotados canards, e as margens de estabilidade de voo foram definidas em 2% em velocidades subsônicas e entre 3-5% em regime supersônico, sendo o T-4 uma aeronave dinamicamente instável em voo, e desta forma desenvolveu-se para o controle de voo (e da estabilidade) o primeiro sistema FBW (Fly-By-Wire, controle de voo assistido por computador) do mundo de três eixos, com tecnologia digital, num protótipo de jato de combate de série. Ele tinha componentes eletrônicos e analógicos (como todos os primeiros FBW digitais), com o computador e o controle nos três eixos dando a capacidade de “auto estabilização” do jato em voo, sem ingerência do piloto; tendo uma redundância quádrupla de canais, para segurança, além de um sistema mecânico de back-up.

Devido às extremas temperaturas altas do voo em Mach 3 (três vezes a velocidade do som), foi desenvolvida uma nova mistura de combustível, designada RG-1, similar ao JP-7 usado pelos norte-americanos no Lockheed SR-71 Blackbird. Esta questão da temperatura também levaria à criação de ligas metálicas especiais, de altíssima resistência ao calor, para uso na estrutura do bombardeiro, destacando-se duas de titânico (VT-20 e VT-22) e uma de alumínio (VNS-2).

O peso padrão de decolagem do T-4 foi calculado em 104.600kg e o máximo em 122.900kg, com o alcance em velocidade de cruzeiro de 3.000km/h, sem tanques extras, sendo 6.200km. E (novamente, pela primeira vez na URSS), os motores RD36-41 teriam sistema de controle e gerenciamento por computador (embora de tipo analógico, não digital como os FADEC atuais). Outro ineditismo na aviação soviética era que a pressurização dos tanques de combustível seria feita com nitrogênio líquido.

Também aviônicos de missão, de comunicações, radar, sistemas de mira e de guerra eletrônica (ECM), foram todos criados especificamente para o T-4. Para o desenvolvimento de tais equipamentos, à partir de 1968, foram utilizados diversos aviões-laboratório do Instituto de Pesquisas de Voo (LII) como os Ilyushin Il-18, Antonov An-26, Tupolev Tu-104B e Tu-22. Também seriam utilizados um Tu-16LL para os testes da turbina RD36-41, e um outro Su-9 modificado, o 100LDU, para o sistema FBW.

Não é difícil de se imaginar a pressão resultante, sobre a indústria aeronáutica e eletrônica soviética, de um programa que englobava tantos sistemas novos e tecnologias avançadas. A própria construção da aeronave, com sua estrutura com ligas especiais, como as de titânio, demandava a concepção de técnicas e ferramentais próprios. Apesar disso, em 1966, o OKB Sukhoi começou a emitir documentação para o primeiro protótipo, designado “Aeronave 101”. Os desenhos técnicos para a construção deste, assim como para um exemplar de testes estáticos em solo, entretanto só estariam todos prontos em 1968 – foram sendo feitos em partes, com os das seções centrais das asas e dos tanques da fuselagem sendo enviados para a fábrica em Tushino no final de 1966, por exemplo. Curiosamente, o elevado nível de automação desenvolvido para a fabricação dos componentes, assim como para o trabalho de soldagem das novas ligas, acabou deixando a construção em si da aeronave não muito mais complicada que a de um jato de combate da época, com estrutura de materiais tradicionais.

Em 1969, as primeiras partes prontas foram recebidas na oficina de protótipos da Sukhoi em Moscou, e os trabalhos de montagem final se estenderam de 1970 a 1971. Depois de alguns testes em solo, o “101” foi finalmente levado para o Centro de Testes de Voo do LII, em Zhukovsky, em 30 de dezembro de 1971.

Então, a natureza interveio. O verão mostrou-se excepcionalmente quente e seco, causando o surgimento de diversos incêndios florestais nas áreas ao redor do centro de testes. Por dias seguidos, o T-4 “101” taxiou e se alinhou na pista – apenas para ter a decolagem abortada devido à precária visibilidade causada pela fumaça. Enfim, em 22 de agosto de 1972, as condições se mostraram favoráveis. A tripulação, composta pelo piloto Vladimir Ilyushin e o navegador Nikolay Alfyorov (ambos, da elite dos pilotos de testes do LII), alinhou o jato na pista principal, decolando e realizando um primeiro voo de 40 minutos.

Observou-se um aquecimento excessivo no tanque dianteiro da fuselagem, e alguns pequenos problemas no sistema hidráulico; tudo retificado sem grande dificuldade, e já alterado, o “101” voou novamente em 1º de janeiro de 1973. Seis outros voos se seguiram, entre 2 de fevereiro e 26 de junho.

Os resultados obtidos não poderiam ser melhores.

Com o FBW sendo usado desde o primeiro voo e não apresentando falhas, o T-4 revelou-se de dócil e fácil pilotagem. E atingia velocidade supersônica (o que ocorreu no nono voo, em 8 de agosto, com Mach 1.28) de forma tão tranquila, sem vibrações ou abalos, que só se percebia que rompera a barreira do som pelo indicador de velocidade. Tudo isto era muito bom, pois em voo, com o nariz elevado, o piloto comandava o aparelho totalmente pelos instrumentos, havendo apenas pequenas janelas laterais, para ele e o navegador/operador de armas, que serviam unicamente para uma noção do ambiente externo. Já com o nariz abaixado, tinha visibilidade excepcional para taxiar, decolar e pousar, e os pilotos de testes ressaltaram o quão suave era a decolagem.

Em 22 de janeiro de 1974, o “101” realizou seu décimo voo, concluindo a primeira fase de testes no ar, com um total de 10 horas e 20 minutos voados. Na fase 2, o “101”  faria a verificação de seus diversos sistemas, e “abriria o envelope de voo”, atingindo todas as performances especificadas (de fato, a fase 1 já indicara que o aparelho era capaz de cumprir, por exemplo, a especificação da velocidade máxima de Mach 3). O segundo protótipo, “102” (em construção), iria validar a suíte de aviônicos; sendo seguido pelos “103” e “104”, que testariam as armas – incluindo o míssil Kh-45. Por fim, o “105” serviria para a integração de sistemas e aviônicos, e o “106”, para validar todo o conjunto com os sistemas de missão. Segundo o plano quinquenal de 1970-75, a VVS previa a aquisição de 250 aeronaves.

Ao mesmo tempo, entretanto, a Força Aérea também colocara pedidos de enormes quantidades do novo caça tático MiG-23, o que criava uma pressão ainda maior sobre o Ministério da Indústria Aeronáutica, cujo titular, Piotr V. Dementyev, não escondia a oposição ao T-4, chegando a dizer ao colega ministro da Defesa, Marechal Andrey Grechko, que a produção do MiG-23 nos lotes previstos só era possível se o programa do bombardeiro da Sukhoi fosse cancelado. Nos bastidores, o próprio Dementyev preocupava-se, junto com diretores das fábricas, como a de Tushino, que o T-4, com tantos sistemas novos e tecnologias inéditas, acabasse inclusive expondo falhas e ineficiências da burocrática estrutura do parque industrial aeronáutico soviético.

Em paralelo, mas em perfeita sensibilidade a este cenário, Tupolev advogava pelo programa do “seu” Tu-22M. Sentindo-se ameaçado pela investida de Sukhoi em “seu nicho” dos grandes bombardeiros, o projetista argumentava que seu modelo, cuja primeira versão principal de produção, Tu-22M2, entrara em produção em 1972, era notavelmente mais fácil de produzir que o T-4, não criando também problemas para o atendimento das encomendas de MiG-23. Assim, defendia, os recursos disponíveis seriam melhor empregados se centralizados num único programa de bombardeiro supersônico – e não em dois.

Enfim, provavelmente em meados de 1974 (a data precisa não é conhecida), todo o programa do Sukhoi T-4 foi cancelado – junto com o do míssil Kh-45. Os protótipos em produção (incluindo o “102”, praticamente pronto) foram todos sucateados, assim como o ferramental da futura linha de produção, na fábrica em Kazan. Restaria apenas o “101”, que em 1982 foi levado de Zhukovsky para Monino, passando a ser exposto ao público no Museu da Força Aérea, ali localizado.

Mas o incrível T-4 deixaria o seu legado.

Pouco mais de três anos depois de seu último voo, em 20 de maio de 1977, o primeiro protótipo do caça Sukhoi Su-27 decolaria, com o modelo entrando em serviço em 1985, tornando-se o primeiro jato de combate operacional de seu país dotado de FBW. Outras tecnologias, como o emprego de ligas de titânio e uma nova geração de aviônicos e sistemas de missão, também seria agregadas ao programa do novo caça, que geraria toda uma família de poderosos jatos de combate, com gerações sucessivas, cujas mais recentes versões, como os caças multifuncionais Su-30MKI e Su-35S, voam nos dias de hoje, como tipos principais de linha de frente, não só na Força Aérea da Rússia, mas de mais de uma dezena de países.

 

Dados Técnicos: Sukhoi T-4

Comprimento total: 44,50m

Envergadura: 22m

Altura: 11,19m

Área alar: 295,70m²

Diâmetro da fuselagem: 2m

Peso máximo de decolagem: 136.000kg

Peso operacional de decolagem: 128.000kg

Peso vazio: 54.800kg

Capacidade interna de combustível: 69.000kg

Velocidade máxima ao nível do mar: 1.150km/h

Velocidade máxima em altitude de cruzeiro: 3.200km/h

Velocidade de cruzeiro em altitude padrão: 950km/h

Teto operacional: 20.000-24.000m

Alcance sem tanques extras: 6.000km

Alcance com tanques extras: 6.500km

Distância de decolagem: 1.500m

Distância de pouso: 1.100m

  

Concepção artística do Sukhoi T-4 em serviço na Força Aérea soviética, sendo escoltado em missão por interceptadores MiG-25. (Arte de Murilo Martins)

 

Raríssima foto do mock-up em tamanho real do T-4, destacando-se o tanque extral ventral e, num pilone subalar, o modelo do míssil Kh-45. Concebido especialmente para o jato da Sukhoi, tal arma teria comprimento de cerca de 10,5m, envergadura de 2m, e alcance de até 1.500km em velocidade de Mach 5-7, com uma ogiva de 500kg (nuclear ou convencional). (Foto via Internet russa)

O protótipo “101” em montagem final na oficina do OKB Sukhoi, em Moscou.

Nesta foto do “101” em Zhukovsky, pode-se avaliar as suas grandes dimensões.

Nesta foto o T-4 “101” é mostrado com o nariz levantado, posição só utilizada em voo, quando então não havia visão alguma à frente, com o piloto voando totalmente por instrumentos (IFR).

Festa em Zhukovsky. Utilizando uma escada de passageiros da Aeroflot, Vladimir Ilyushin e Nikolay Alfyorov descem do T-4, após o bem-sucedido primeiro voo deste, em 22 de agosto de 1972.

Pouso em Zhukovsky, observando-se o nariz abaixado e o uso de paraquedas de frenagem.

Neste fotograma de filmagem, o T-4 “101” em voo nivelado, com o nariz levantado.

Fotograma de filmagem, mostrando o “101” em aproximação para pouso em Zhukovsky, com o nariz já abaixado para permitir visibilidade à frente.

Créditos: Todas as fotos gentilmente cedidas por Yefim Gordon, exceto quando citado.

 

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Redação

Comentários

  • MUITO LEGAL E REALMENTE PRA MIM MESMO NÃO SENDO UM “ESPECIALISTA” DA ÁREA SÓ ALGUÉM CURIOSO E QUE GOSTA,IGUAL CAVIAR NUNCA TINHA VISTO OU OUVIDO FALAR, IGUAL A MUSICA DO ZECA PAGODINHO !

  • Chega quase a ser inacreditável que um projeto praticamente perfeito, testado à exaustão, tenha sido posto de lado por pura inveja, ciúme, ao que parece, daqueles que se consideravam “camaradas”, conforme se designavam uns aos outros. Além disso, havia ainda o temor de que se expusessem as mazelas da burocracia soviética. Tudo isso após o dispêndio de tanto trabalho árduo e milhões de dólares ou rublos que nem foram levados em conta, devido ao fechado e granítico sistema político soviético. O Ocidente agradece a descontinuidade do projeto dessa bela máquina.

  • Saudações aos responsáveis pelo site ASAS, e, lógico, pela revista.
    Excelente matéria sobre a tecnologia aeronáutica russa (soviética), de antes, e, de certa forma, atual.
    O maior elogio que posso fazer é que manterei como referência no campo da aviação essa importante publicação, em qualquer dos seus formatos.

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