DOS ARQUIVOS DE ASAS

V-Bomber Force – A Espada Nuclear do Leão Britânico

Por Thomas Matthew

A designação “V-Bomber Force” (Força de Bombardeiros V) surgiu nos anos 50, designando a capacidade estratégica de ataque nuclear da Royal Air Force (RAF, Força Aérea britânica), durante os anos 50 e 60, no auge da Guerra Fria. Oficialmente, havia a designação Bomber Command Main Force (Força Principal do Comando de Bombardeio), mas o nome V-Bomber Force foi que de fato se popularizou, inclusive em documentos oficiais, baseando-se no fato dos três modelos de grandes bombardeiros a jato que compunham sua frota serem todos os três batizados com nomes iniciados com a letra “V” – Valiant, Vulcan e Victor. Embora cada um fosse de um fabricante diferente (Vickers, Avro e Handley-Page, respectivamente), também eram chamados de “V-Class” (Classe V). A gênese de tal força de bombardeiros estratégicos tinha raízes, pode-se dizer, no “dia seguinte” ao fim da 2ª Guerra Mundial…

Tendo emergido do conflito, entre as nações vitoriosas, com a vanguarda tecnológica da então revolucionária tecnologia de propulsão, o Reino Unido não teve dificuldades em, já em 13 de maio de 1949, fazer voar o protótipo de seu primeiro bombardeiro com a nova propulsão, o English Electric A.1 Canberra, cujos primeiros exemplares de série (versão B.Mk 2) entraram em serviço na RAF em maio de 1951. Dadas as diferenças de recursos em relação às duas superpotências, foi um feito notável – o primeiro bombardeiro a jato operativo norte-americano, o North American B-45 Tornado, entrara em serviço em 1948; e o primeiro dos soviéticos, o Ilyushin Il-28, em 1950.

Porém, tratavam-se de modelos táticos, todos estes, e havia ainda o desafio de levar o jato aos bombardeiros estratégicos, de grande alcance, e que, na nova realidade das grandes potências, na nascente Guerra Fria, teriam carga bélica de bombas nucleares.

Imediatamente após o fim da 2ª Guerra Mundial, o Bomber Command da RAF se reequipou com o bombardeiro quadrimotor Avro Lincoln, mas este era apenas uma versão muito melhorada dos Lancaster, do período da guerra, e como este, usava motores a pistão. A nova realidade das defesas aéreas dotadas de caças a jato, entretanto, deixava óbvia a obsolescência dos grandes bombardeiros quadrimotores a pistão – como ficaria terrivelmente demonstrado com as perdas dos B-29 norte-americanos na Guerra da Coréia.

Em fins da década de 40, o Reino Unido tinha a liderança na Europa Ocidental, e se colocava como o mais poderoso aliado dos EUA no Velho Mundo, para fazer frente ao recém-constituído Bloco Soviético. Assim, já em agosto de 1947, o Ministério do Ar britânico emitiu a Especificação B.14/46, visando a um substituto a jato para o Lincoln, que ditava uma carga de bombas de até 9.070kg, um alcance de 2.780km (com pelo menos metade da carga bélica máxima), teto operacional de 13.700m e velocidade máxima de 800km/h.

Ainda durante a guerra, os alemães já haviam colocado em ação os primeiros mísseis antiaéreos, e apesar de tais armas poderem vir a ser letais adversários aos bombardeiros, o seu desenvolvimento não se provara fácil – não se previa que um míssil guiado antiaéreo realmente efetivo estivesse disponível, e em quantidade, num prazo que anulasse o valor militar do bombardeiro estratégico a jato – assim, o desenvolvimento deste foi defendido, inclusive como dissuasor nuclear a qualquer nação que fizesse planos de agressão contra o Reino Unido. O futuro bombardeiro, entretanto, também representava o fim da então vigente doutrina de bombardeios estratégicos maciços, com centenas (e até milhares) de aeronaves, pois se uma única arma nuclear podia gerar destruição ampla em toda uma cidade, deixava de haver a necessidade de tais reides maciços.

No mesmo mês de agosto de 1947, a Short obteve um contrato de desenvolvimento ligado ao B.14/46, iniciando os trabalhos no seu projeto SA4, cujo primeiro protótipo voou em 10 de agosto de 1951.

Entretanto, o fato é que a B.14/46 fora emitida como um “seguro”, uma garantia baseada num requerimento menos desafiador, à uma outra especificação, a B.35/46, esta emitida em janeiro de 1947, e que visava ao, digamos assim, bombardeiro estratégico “definitivo” do Reino Unido. Este, segundo o requerimento, devia ser capaz de levar uma arma nuclear de até 4.500kg até um alvo a 2.775km de sua base, tendo uma velocidade de cruzeiro de 925 km/h, com um teto operacional de 15.200m.

Para esta, a Handley Page e a Avro apresentaram projetos com características (incluindo design) muito avançadas, e o Ministério do Ar decidiu fechar contratos de desenvolvimento com os dois fabricantes, até como medida de garantia, caso um deles se mostrasse decepcionante. Um terceiro projeto, apresentado pela Vickers, foi de início rejeitado, por ser bem mais “conservador”, mas acabou sendo contratado para desenvolvimento (em parte, fruto de pesado lobby do fabricante), através da emissão de um requerimento novo, o B.9/48.

Valiant, o Primeiro

Batizado pela Vickers de Type 660, o primeiro protótipo voou em 18 de maio de 1951, tornando-se o primeiro bombardeiro quadrimotor britânico a voar, e logo no início da campanha de testes, mostrou-se com excelentes características. Deste modo, o programa da Vickers tornou desnecessário o do mais limitado Sperrin, que foi então cancelado.

A RAF ficou entusiasmada com a nova máquina.

Durante o conflito mundial, o mítico primeiro-ministro britânico, Sir Winston Churchill, popularizara o gesto com os dois dedos abertos, no “V” de “Vitória”. Assim, como uma lembrança da capacidade britânica de resistir e vencer no final, decidiu-se batizar os novos bombardeiros com nomes iniciados com “V”. Entrando em serviço na RAF no início de 1955, com os primeiros exemplares (versão B.Mk 1) entregues ao 138 Squadron, o Type 660 recebeu o nome de serviço de Valiant.

O aparelho de matrícula WZ366, do 49 Squadron, se tornaria o primeiro avião da RAF a lançar uma bomba atômica, durante a campanha de testes em Maralinga, Austrália, em 11 de outubro de 1956. E pouco depois, em 15 de maio de 1957, outro Valiant do mesmo esquadrão lançou a primeira bomba de hidrogênio britânica.

E o Valiant também teve a primazia de ser o primeiro dos V-Bombers a entrar em ação real. Em outubro-novembro de 1956, durante a chamada Crise de Suez, os grandes bombardeiros foram deslocados para Luqa, em Malta, a partir de onde realizaram missões de bombardeio convencional contra alvos no Egito. Entretanto, os resultados foram frustrantes – mesmo sem oposição séria das defesas egípcias (o que permitiu que não houvessem perdas dos bombardeiros), e lançando um total de 842 toneladas de bombas, dos sete aeródromos militares egípcios atacados como alvos primários, apenas três tiveram de fato danos sérios.

Mais tarde, em 1963-1964, a RAF decidiu alterar sua doutrina de ataque nuclear.

O avanço e maior capacitação das defesas soviéticas, como ficara evidente no abate do avião espião norte-americano U-2, em maio de 1960, tornava inviável a doutrina anterior e definia uma nova, de penetração dos bombardeiros em voos a baixa altitude, assim buscando evadir-se da detecção pelos radares da defesa aérea. A nova doutrina, entretanto, implicava em esforços estruturais para os quais o Valiant nâo fora projetado e assim, em janeiro de 1965, após se verificarem sérios problemas de fadiga, o modelo foi retirado do serviço ativo da RAF.

Vulcan e Victor

 O segundo “V-Bomber” a entrar em serviço foi o aparelho da Avro, cujo design era surpreendente, sendo uma aeronave de grandes dimensões, com asa em delta sem cauda.

A equipe de seu projeto (designado Avro 698) era liderada pelo director-técnico da empresa, Roy Chadwick, e o time investigara profundamente as pesquisas alemãs de asas enflechadas, da época da guerra, chegando à configuração do delta sem cauda, com os quatro motores “embutidos” nas raízes das asas. Embora o alemão Alexander Lippisch tenha sido o pioneiro pesquisador e defensor das chamadas “asas voadoras” e da asa em delta, entretanto, o fato é que a asa do Avro 698 não foi “herdada” dos trabalhos de Lippisch, mas sim resultante do processo próprio de projeto desenvolvido pela equipe de Chadwick. Para testar em voo o então novo formato de asa, foi construído um pequeno lote de aviões experimentais, os Avro 707, com a asa do futuro bombardeiro, em escala 1/3.

Enfim, o primeiro protótipo do Avro 698 voou em 30 de agosto de 1952. Infelizmente, o aparelho viria a ser perdido num acidente, em 14 de setembro de 1958; mas um segundo protótipo voara em 3 de setembro de 1953, com o primeiro exemplar de produção (versão B.Mk 1) voando em fevereiro de 1955, e o modelo entrando em serviço na RAF em julho de 1956.

Em 1960, entrava em serviço a versão “definitiva”, bastante melhorada, do bombardeiro, a B.Mk 2; e no ano seguinte, 1961, todos os B.Mk 1 operativos seriam modificados para a versão B.Mk 1A, distinguível por um proeminente cone na cauda para os novos sistemas de guerra eletrônica (ECM). Mais tarde, os próprios B.Mk 2 seriam modernizados no padrão B.Mk 2A, que teria também exemplares novos de produção.

O terceiro bombardeiro deveria ser o mais sofisticado e avançado dos três, com um projeto que o deveria fazer ser capaz de penetrar quaisquer defesas adversárias. Dotado de uma asa em formato de “crescente”, o primeiro protótipo do modelo, designado HP.80 pela Handley-Page, voou em 24 de dezembro de 1952, e a versão definitiva de série inicial (B.Mk 1 Victor) em fevereiro de 1956, entrando em serviço na RAF em novembro de 1957.

O pico de operacionalidade (e poder) da V-Bomber Force foi em junho de 1964, quando a V-Bomber Force alinhava 50 bombardeiros Valiant, 70 Vulcan e 39 Victor em serviço ativo. E, assim como o Valiant, os dois outros modelos tiveram os seus momentos de ação real – em determinado momento da confrontação entre a Indonésia e a Malásia (crise que se estendeu de 1963 a 1966) pelo controle de Bornéu, a RAF deslocou alguns de seus Victor e Vulcan para o Arquipélago Malaio, como instrumentos de dissuasão (à favor da Malásia), mas os bombardeiros não chegaram a ser empregados em missões efetivas de ataque. Já em 1982, por ocasião da invasão argentina das Ilhas Falklands, no Atlântico Sul, os Vulcan foram empregados efetivamente em bombardeios contra as posições argentinas nas ilhas, com os Victor lhes dando apoio como aviões-tanque.

Dissuasão Nuclear

A principal razão de ser da V-Bomber Force, porém, sempre foi a de dissuasão nuclear, dentro do cenário geral da Guerra Fria, e para tal função, uma atenção particular era dada à capacidade de reação rápida e alta manobrabilidade das aeronaves, uma vez que se consideração em alta probabilidade a possibilidade de ataques preventivos soviéticos às bases aéreas. Estas capacidades eram especialmente notáveis nos Vulcan B.Mk 2, capazes de decolar em espaço relativamente curto (para um jato de seu porte), em menos de 1.500m de pista, e ascender em impressionantes ângulos de 45º-50º, ganhando tanto velocidade quanto altitude.

Em tese, a V-Bomber Force era capaz de atingir tanto alvos de alto valor (como bases aéreas e centros de comando) quanto de grandes áreas (como cidades) do inimigo, horas antes que estes pudessem ser atingidos por quaisquer outros vetores da OTAN, ou mesmo por qualquer dos bombardeiros do SAC (Strategic Air Command, o comando de bombardeio estratégico da USAF), tornando assim os aviões britânicos uma valiosíssima peça de dissuasão no terrível xadrez nuclear dos dois blocos antagônicos.

Uma análise sigilosa (“white paper”) da própria RAF, produzida para o governo britânico em 1961, atestava que os aviões da V-Bomber Force garantidamente podiam varrer cidades-chave soviéticas, como Moscou e Kiev, antes mesmo que qualquer bombardeiro norte-americano do SAC houvesse sequer penetrado no espaço aéreo soviético. Durante a Crise dos Mísseis em Cuba (1962), os bombardeiros britânicos foram colocados em alerta de 15 minutos, armados com artefatos nucleares e com as tripulações prontas, ao lado das aeronaves.

Porém, como já citamos, logo em seguida, em 1963-1964, o Alto-Comando britânico reconhecia que a evolução das defesas aéreas soviéticas tornara pouco provável a penetração do espaço aéreo inimigo pelos bombardeiros voando a grandes altitudes. O Governo britânico buscou como solução a aquisição de quase 200 dos novos mísseis norte-americanos Douglas GAM-87 Skybolt, que começara a ser desenvolvido em 1959 e era um míssil balístico lançado de aeronave (ALBM), com ogiva nuclear, capaz de atingir um alvo a 1.850km da aeronave-lançadora, com uma velocidade de 15.300km/h. A arma daria muito mais efetividade aos bombardeiros, que assim poderiam manter sua capacidade de dissuasão nuclear mesmo diante das renovadas defesas soviéticas. Entretanto, apesar de inúmeras negociações, o programa do Skybolt acabou sendo cancelado pelo governo norte-americano em dezembro de 1962. Sem muita alternativa, então, a RAF decidiu alterar seis esquadrões de Vulcan B.Mk 2 para uma doutrina de penetração a baixa altitude (de 65m a menos!) em alto regime de voo subsônico, para lançamento de bombas nucleares de queda livre WE.177B (o que obrigava os aviões a terem de sobrevoar a área de seus alvos), efetivando-se a mudança em 1966; enquanto dois esquadrões de Victor adotavam a mesma doutrina de ataque, mas com mísseis Blue Steel (adaptados para lançamento à baixa altitude, mas com apenas 240km).

O Fim

 A chamada “Crise do Skybolt” realmente abalara as relações entre Londres e Washington DC, e como resultado desta, o governo norte-americano decidiu ceder aos britânicos o seu então ímpar sistema de lançamento submerso de mísseis balísticos, o UGM-47 Polaris, que passara a equipar os primeiros submarinos de propulsão nuclear do mundo armados com mísseis balísticos de ogiva nuclear e lançamento submerso (SSBN), os da Classe George Washington, cujo primeiro exemplar entrara em serviço na Marinha norte-americana (USN, US Navy) em dezembro de 1959.

Para portar os Polaris, a Royal Navy (Marinha britânica) desenvolveu a sua própria classe de submarinos SSBN, a Resolution, cuja primeira embarcação entrou em serviço em 1968. Seriam construídos quatro submarinos, e quando os Resolution se tornaram totalmente operativos, no início dos anos 70, assumiram o papel de dissuasão nuclear estratégica do Reino Unido – antes, feito pela V-Bomber Force. Aos grandes bombardeiros, restaria ainda a missão de ataque nuclear tático, mas mesmo este logo passaria aos supersônicos de ataque Panavia Tornado, colocados em serviço em 1979, muito mais modernos e efetivos em tal tarefa – assim como na de ataque convencional.

Deste modo, a V-Bomber Force foi “aposentada” logo no início dos anos 1980 – com as missões realizadas pelo Vulcan no Atlântico Sul, em 1982, sendo seu derradeiro “canto de cisne”.

Vickers Valiant.

 

Bombardeiros Avro Vulcan na Base Aérea de Cottesmore, no Reino Unido, em 1975.

Pouso de um Handley-Page Victor, em 1961, ostentando a pintura de ataque nuclear a grande altitude.

O Valiant é exibido na mostra aeronáutica de Farnborough, no Reino Unido, em 1951.

O WB771, protótipo do Victor, é mostrado ao público na mostra aeronáutica de Farnborough, no Reino Unido, em 1953.

 

O Vickers Valiant B.Mk 1, matrícula WZ393, do 90 Squadron da RAF, fotografado em junho de 1957.

Um Valiant com a camuflagem adotada quando os bombardeiros “V” passaram para a doutrina de voos de penetração em baixa altitude.

Dois esquadrões da RAF de Valiant modificados assumiram a missão de reabastecimento em voo dos bombardeiros estratégicos à partir de 1958, mas com a retirada de serviço de todos os Valiant, em 1965, esta tarefa fundamental teve de ser assumida pelos Victor.

Os reabastecedores Victor K.2 atendiam não apenas aos grandes bombardeiros, mas também à outras aeronaves da RAF, como os interceptadores supersônicos Lightning, vistos aqui.

Durante a Guerra do Golfo, em 1991, os reabastecedores Victor K.2 mostraram-se preciosos, atendendo não apenas as aeronaves da RAF envolvidas, como os supersônicos de ataque Tornado IDS, mas também aeronaves de outros países da Coalizão militar formada para combater o Iraque.

 

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