AVIAÇÃO COMERCIAL & PRIVADA DOS ARQUIVOS DE ASAS

Crimes, erros e foragidos: os 15 anos do acidente Gol-Legacy

O Legacy N600XL, já com a nova matrícula mexicana Foto: Eric Denison - Wikimedia Commons

Na imensidão de mais de 22 milhões de Km² de espaço aéreo sob responsabilidade brasileira, o winglet de um jato executivo Legacy cortou como uma lâmina a asa de um Boeing 737 da empresa Gol Linhas Aéreas do voo 1907. Mais que uma absoluta falta de sorte, a tragédia deixou como saldo 154 vidas perdidas, uma missão de busca e salvamento com quase dois meses de duração, depoimento em CPI com lágrimas de um Brigadeiro do Ar, questões jurídicas, prisões e até foragidos.

Aeronave semelhante à envolvida no acidente de 29 de setembro de 2006
Foto: Renato Spilimbergo Carvalho

Com matrícula PR-GTD, o Boeing 737-8EH da Gol Linhas Aéreas era praticamente novo: a aeronave havia sido entregue à companhia somente 17 dias antes e registrava apenas 202 horas de voo. Naquela tarde de 29 de setembro de 2006, decolou às 15h35 de Manaus com destino ao Galeão, com escala prevista em Brasília. Era o voo 1907. Havia seis tripulantes e 148 passageiros a bordo, com um grande número de estrangeiros: 10 argentinos, 6 norte-americanos, 5 mexicanos, canadenses, 3 colombianos, 4 franceses, 3 australianos, 2 sul-africanos, 4 venezuelanos, dois portugueses e um japonês.

Pouco antes das 17h, a asa esquerda do Gol foi atingida pelo winglet do jato executivo Legacy 600, com matrícula norte-americana N600XL, operado pela empresa ExcelAire. Apesar das tentativas heroicas dos pilotos da Gol, registradas pelos gravadores de dados, o Boeing ficou incontrolável e caiu na selva. Já o Legacy, com danos no winglet esquerdo e no estabilizador horizontal, fez um pouso de emergência no aeródromo do Campo de Provas Brigadeiro Velloso, da Força Aérea Brasileira, a cerca de 160 quilômetros de distância.

O Legacy era novo, com apenas 19 horas registradas. Havia decolado da fábrica da Embraer em São José dos Campos com destino a Fort Lauderdale, com parada técnica prevista para Manaus. A bordo estavam o comandante Joseph Lepore e o primeiro-oficial Jean Paul Paladino, ambos norte-americanos, além de cinco passageiros, sendo dois executivos da ExcelAire, dois funcionários da Embraer e o jornalista Joe Sharkey, do The New York Times. Todos sobreviveram, e cinco dias depois o profissional convidado a escrever sobre aviação executiva publicou o texto “Colliding With Death at 37,000 Feet, and Living”.

O texto afirma que os ocupantes do Legacy sequer perceberam o que aconteceu. Ainda assim, os 30 minutos de voo até o pouso em segurança foram descritos como angustiantes. Os pilotos lutaram com a aeronave danificada e, somente horas após o pouso souberam do Boeing. O texto de Joe Sharkey dá um tom de heroísmo aos tripulantes do Legacy.

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A colisão entre o Legacy e o Gol 1907 ocorreu às 16h56, no horário local. Às 17h23, o Legacy fez o pouso de emergência na base de Cachimbo. No dia seguinte, 30 de setembro de 2006, um C-130 Hércules da Força Aérea Brasileira localizou parte da fuselagem em uma região de mata densa. Do alto, a tripulação conseguiu identificar a asa da aeronave. Dois militares desceram do guincho de um helicóptero UH-1H e o cenário imediatamente deixou claro que as perdas humanas seriam totais. À época, o então presidente Lula decretou três dias de luto oficial.

Consequências

O acidente foi o estopim da chamada “crise aérea”, período em que a aviação brasileira foi marcada por atrasos, informações desencontradas e até uma tentativa de tornar civil o controle de tráfego aéreo realizado pela Força Aérea. Ainda assim, havia pelo menos dois anos que os militares alertavam para a falta de recursos para o setor.

Ao longo de 2007, uma CPI (Comissão Parlamentar de Inquérito) sobre o tema dominou as manchetes nacionais, em meio a supostas greves de controladores de tráfego aéreo, incluindo militares, eventuais falhas de equipamentos e o acidente do voo TAM 3054, em Congonhas (SP), causando a morte de 199 pessoas. Em um dos depoimentos da CPI, o Brigadeiro Jorge Kersul, que havia chefiado a missão de busca e se envolvido diretamente no trabalho na mata, chorou com a acusação, sem provas, de que militares teriam roubado pertences das vítimas.

Foto: Valter Campanato – Agência Brasil

No fim de dezembro de 2008, mais de dois anos após o acidente, o Centro de Investigação e Prevenção de Acidentes Aeronáuticos (CENIPA) emitiu o seu relatório final. Sem a função judicial, focando-se apenas na prevenção de acidentes, o texto apontava erros da tripulação do Legacy e dos controladores de tráfego aéreo. Para o Cenipa, faltou planejamento e consciência situacional dos pilotos do Legacy, com pressa, informalidade, falta de procedimentos e o desligamento do transponder, procediemnto este classificado no relatório do Cenipa como “inadvertido”. Esse fator foi fundamental para que o sistema de preveniria colisões, o TCAS, não funcionasse no momento fatal. Além disso, os pilotos do Legacy passaram quase uma hora voando em um altitude que não estava correta.

Ao mesmo tempo, o Cenipa apontou falhas do controle do espaço aéreo, como procedimentos inadequados, transmissão de informações incompletas. O principal erro apontado é que, ao não fazer contato com o Legacy para corrigir sua altitude, os controladores possibilitaram o voo onde havia uma aerovia na direção contrária, por onde voava a tripulação do Gol, que teve conduta correta durante todo o seu voo. O Cenipa identificou até o uso de uma fraseologia errada.

Não era apenas um erro individual. O Cenipa apontou déficit de pessoal no Quarto Centro Integrado de Defesa Aérea e Controle de Tráfego Aéreo (CINDACTA IV), de Manaus, o que dificultava a manutenção do treinamento continuado dos controladores. Observou-se que a avaliação teórica anual não vinha sendo eficaz, e sequer foi possível reconstituir o perfil operacional dos envolvidos porque faltavam registros referentes à instrução e capacitação técnica. A falta de pessoal também dificultava a estruturação das escalas operacionais, prejudicando a qualidade do serviço.

Na Justiça, o Ministério Público Federal pediu a condenação de quatro controladores de voo por condutas que caracterizariam atentado contra a segurança de transporte aéreo. Os controladores foram absolvidos na justiça comum, mas Jomarcelo Fernandes dos Santos foi condenado pela Justiça Militar por homicídio culposo. Para o MPF, os controladores tinham o dever legal de tomar providências para evitar o acidente, informando sobre a falta de comunicação com o jato ao centro de controle do espaço aéreo de Manuas.

Quanto à Gol, a maioria das famílias fez acordos para as reparações. O valor das indenizações foi calculado de acordo com a idade e o salário do familiar que morreu no acidente, montantes que somaram de 100 mil a 1,5 milhão de Reais.

Militares da FAB com um dos gravadores do jato da Gol
Foto: Alessandro Silva / FAB

Pilotos norte-americanos

Quinze anos após o acidente, os pilotos norte-americanos Joseph Lepore e Jean Paul Paladino, que pilotavam o jato Legacy, não foram presos. Eles foram condenados a reclusão de três anos, um mês e dez dias em regime aberto, em uma sentença definida em 2015.

O Ministério da Justiça do Brasil chegou a emitir uma intimação, mas o Departamento de Justiça dos Estados Unidos alega não ter mecanismos para aplicar a setença brasileira. Aqui, eles são considerados foragidos.

Paralelo ao Cenipa, o National Transportation Safety Board (NTSB), equivalente norte-americano, fez um relatório também focado na segurança de voo. A leitura dos textos permite compreender que conclusões semelhantes foram alcançadas, porém, é possível verificar que o NTSB teria culpado mais os controladores brasileiros e menos os pilotos estrangeiros.

Legacy foi para o México

Já o Legacy teve uma trajetória até por mar. Com apenas 19 horas de voo, mas danos estruturais, o avião passou quase quatro anos na base da FAB no sul do Pará. Só então a empresa General Aviation Services comprou o jato e o enviou para os Estados Unidos para reparos, trabalho concluído só em 2011. A partir daí, foi anunciado como um avião praticamente novo, pronto para voos executivos. Dois anos depois, a empresa mexicana FlyMex, especializada em voos charter, fez a compra. Com a nova matrícula XA-MHA, continua em operação.

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