AVIAÇÃO COMERCIAL & PRIVADA

Poderoso e Inútil

A Saga do SR.45 Princess

Imagine-se dono de uma empresa que acabasse de desenvolver o melhor aparelho de VHS do mundo – exatamente quando chega ao mercado o DVD. Um legítimo pesadelo, e que tem mais exemplos reais na história do que se pode imaginar, até porque o surgimento de um novo parâmetro nem sempre é tão fácil, ou claro, de se identificar. E a aviação não foge dessa regra, com alguns “equívocos” que, de tão estrondosos, tornaram-se inesquecíveis.

Foi este o caso, um fracasso de proporções épicas, de um dos maiores, mais impressionantes e mais avançados hidroaviões de todos os tempos, o Saunders-Roe SR.45 Princess.

Se é que se pode dizer isso, a saga deste cetáceo alado britânico começou errado desde a primeira linha no papel. Antes mesmo da 2ª Guerra Mundial, em 10-11 de agosto de 1938, um quadrimotor Focke-Wulf Fw-200 Condor, da companhia germânica Deutsche Luft Hansa (DLH), fez um voo sem escalas de Berlim (Alemanha) a New York (EUA). O voo foi experimental, mas deixou um recado claro – chegara o tempo em que aviões baseados em terra podiam cruzar sem problemas os oceanos, ligando os continentes. A “Era de Ouro” dos hidroaviões comerciais, nas rotas transoceânicas, tinha seus dias contados. Veio então o conflito mundial e, com ele, o desenvolvimento de grandes bombardeiros, capazes por exemplo de voar da Inglaterra até Berlim, e das Ilhas Marianas até Tóquio; e com o advento da paz, não se precisou esperar muito para que tais capacidades fossem transferidas à aviões comerciais. Mas se isso parece tolamente óbvio hoje, não era assim em 1945, quando a guerra terminou.

Naquele mesmo ano, buscando reaquecer a indústria aeronáutica civil do país, o Ministério de Suprimentos (MoS) britânico lançou um pedido à fabricante Saunders-Roe (Saro) de um hidroavião comercial de longo alcance, que permitisse à companhia aérea British Overseas Airways Corporation (BOAC) estabelecer linhas de passageiros transatlânticas. O requerimento veio de encontro ao sonho do vice-presidente da Saro, Sir Arthur Gouge, que trabalhara antes na Short Brothers, onde participara dos programas de grandes e bem-sucedidos hidroaviões comerciais nos anos 30, como os Empire C-Class e G-Class. Entusiasta de tais aeronaves, Gouge acreditava que o pós-guerra era o momento ideal para uma nova geração de hidros. Unido ao projetista-chefe da Saro, Henry Knowles, foi gerada uma proposta, em resposta ao MoS, que foi aceita por este, com a assinatura, em maio de 1946, de um contrato no valor de 2,8 milhões de libras para a construção de três hidros gigantes de um novo tipo, o SR.45 Princess.

A construção do primeiro protótipo teve início em 1948 e, nele, nada era comum.

A motorização era composta por nada menos que dez (!) turboélices Bristol Proteus (para os protótipos, da série 2, e para o modelo de produção, da 3), instalados em seis naceles, sendo que as quatro internas tinham hélices duplas De Havilland, contra-rotativas, cada conjunto acionado por um dois Proteus acoplados, num conjunto chamada Coupled Proteus. Esta opção de motorização, porém, viria a ter parcela considerável no destino final do gigante. A Bristol teve atrasos em sua entrega (a Saro só receberia os primeiros motores em 1950) e, quando enfim chegaram, exibiram uma performance aquém da esperada – 2.500hp, em vez dos 3.500 prometidos. Além disso, os turboélices acoplados exibiram problemas de confiabilidade em suas caixas de transmissão, que nunca foram efetivamente sanados.

Apesar disso, o Princess era impressionante e, sob diversos aspectos, inovador.

Sua fuselagem, que em terra firme era mais alta que um prédio de três andares, era do tipo “bolha dupla”, pressurizada e com dois “andares” (ou conveses), para até 105 passageiros, em acomodações de grande conforto e luxo. As superfícies móveis de voo, ailerons e leme, eram divididas em diversas seções, de modo que se houvesse falha, a seção danificada podia ser travada, não interferindo no bom funcionamento das outras seções. E estas superfícies eram acionadas por um sistema servo-assistido, desenvolvido pela Boulton Paul e testado num Shorts Sunderland; possuindo ainda uma redundância manual, como back-up. Além disso, o avião era dotado de piloto automático.

Enquanto se iniciava a construção dos Princess nas instalações da Saunders-Roe em East Cowes, na Ilha de Wight, entretanto, a BOAC recebia seus primeiros quadrimotores de base terrestre e longo alcance Lockheed Constellation, de fabricação norte-americana, e num duríssimo golpe no Princess, em 1951, a companhia aérea anunciou que não tinha mais interesse no gigante. Numa medida emergencial, em vista do trabalho já feito, anunciou-se que os três exemplares em montagem seriam concluídos, de acordo com o contrato do MoS, mas não com o interior luxuoso previsto, e sim como transportes militares para a RAF (Força Aérea britânica), com capacidade para 270 soldados equipados, com alcance de 6.000km. Logo em seguida, porém, em março de 1952, foi comunicado que apenas o primeiro protótipo, cuja construção estava já bem adiantada, seria de fato completado. Os outros dois, ao menos oficialmente, ficariam estocados, incompletos, na expectativa de disponibilidade de motores de maior potência – na análise feita pela RAF, para um transporte militar, mesmo com seus dez motores, o Princess carecia de potência.

E foi neste cenário que o primeiro protótipo, registrado G-ALUN, realizou o seu voo inaugural, nas mãos experientes do piloto de testes Geoffrey Tyson (liderando uma tripulação de 11 outros membros), em Solent, em 22 de agosto de 1952, decolando às 12h28. E, para espanto de muitos, ao deixar a aeronave, Tyson elogiou efusivamente as qualidades de voo desta, “que apesar de seu tamanho, responde aos comandos como um caça a jato”.

Ao fim do programa de voos previsto, o único Princess completado, o G-ALUN, fizera 47 voos, num total de 97 horas e 50 minutos voados – incluindo uma aparição surpresa na mostra aeroespacial internacional de Farnborough, em setembro de 1952 (onde voltaria a aparecer no ano seguinte, em sua última apresentação pública em voo). Mas apesar de tudo isso, nem mesmo o solitário G-ALUN entraria em serviço na RAF – o que, afinal, não fazia sentido, imaginando-se o custo de se operar militarmente um único exemplar de um avião gigante, de dez motores!

Em 27 de maio de 1954, o G-ALUN faria seu último voo.

Apesar da ascendência então evidente de aviões comerciais “terrestres” de longo alcance (como o Boeing 377 Stratocruiser) e dos jatos (o protótipo do Boeing 707 faria seu primeiro voo em 20 de dezembro de 1957), e da disponibilidade cada vez maior de aeroportos bem equipados, foram feitas ainda tentativas de se manter vivo o hidro gigante. No início de 1953, em lugar do pouco sedutor acabamento metálico, o G-ALUN recebeu uma atraente pintura, no estilo então clássico de uma “aeronave comercial de linha”, com faixas na fuselagem, detalhes no nariz e uma grande bandeira do Reino Unido na cauda. Pouco antes, em dezembro de 1951, numa parceria da Saro com a Airwork, fora criada a Princess Air Transport Co. Ltd, para analisar a viabilidade de operação do SR.45, e buscar possibilidades de mercado. Por outro lado, apesar de terem ficado incompletos os dois outros SR.45 (registrados G-ALUO e G-ALUP), em 1954, a Aquila Airways ofereceu um milhão de libras por aeronave, para a compra de todos os três aparelhos – oferta que, infelizmente, foi recusada. E esta não foi a única oferta! Uma outra proposta, das mais interessantes, era para a operação comercial dos Princess de Southampton (Reino Unido) e da região dos Grandes Lagos, no Canadá, em voos para o Rio de Janeiro (com a possibilidade de extensão até Montevidéu, no Uruguai, e Buenos Aires, na Argentina). Para isto, previu-se a troca dos motores Proteus por seis Rolls-Royce RB.109 Tyne, de 6.100hp cada, que superariam a questão da falta de potência do SR.45. O idealizador da proposta era o empresário inglês B.G. Halpin, mas diante da falta de apoio do MoS (de onde surgira o contrato que gerara os hidros), o plano acabou sendo abandonado em março de 1960. Ainda pensando na remotorização com os Tyne, Halpin faria uma outra tentativa, criando em novembro de 1960 a British Princess Flying Boats Ltd, então com planos de rotas ligando Southampton a Baltimore, Chicago e Detroit, nos EUA. Mas também esta proposta não seguiu adiante, diante da falta de apoio do governo britânico.

Por seu lado, a própria Saro, em 1957, proporia a conversão dos SR.45 em aeronaves “terrestres”, para uso como transportes militares. Mas a proposta mais exótica, sem dúvida, surgira em 1956, quando a documentação técnica do SR.45 foi enviada para a Marinha norte-americana (US Navy), que estudava a possibilidade de adquirir os gigantes, dentro de um programa secreto experimental, para que fossem convertidos à um sistema de propulsão nuclear! Uma equipe da Saro chegou a viajar para os EUA, para discutir detalhes do projeto, e da venda dos Princess, e a Glenn L. Martin Company, em Baltimore, chegou a fazer modelos do avião e testes destes em tanques. Mas também esta proposta não deu fruto algum.

Assim, ignominiosamente, os Princess foram “envelopados”, buscando a melhor proteção possível, e estocados – o G-ALUN em West Cowes e os outros dois em Calshot. Então, em 1964, surgiu a proposta concreta do G-ALUN ser adquirido (enfim!) por Eoin Mekie, da Aero Spacelines, para servir como cargueiro especial, transportando componentes do foguete lançador espacial Saturn V, para a agência espacial norte-americana, a NASA. Mas, ao ser removido o “envelopamento”, em maio de 1966, descobriu-se que o hidro estava em péssimas condições, com avançado nível de corrosão – e o negócio foi cancelado. Sem condições de ser recolocado para voar, sobrou um único e triste destino ao G-ALUN – ser desmantelado e sucateado em Southampton, para onde foi levado em 12 de abril de 1967 (o que já fora feito com os outros dois Princess, em Calshot, três anos antes).

Encerrava-se a triste saga do último grande hidroavião de passageiros do mundo.

 

FICHA TÉCNICA: Saunders-Roe SR.45 Princess

Tripulação de voo: dois pilotos, dois engenheiros de voo, rádio-operador e navegador

Comprimento: 45m

Envergadura: 66,90m

Altura: 16,99m

Área alar: 466,30m²

Peso vazio: 86.183kg

Peso máximo de decolagem: 156.501kg

Velocidade máxima: 611km/h

Velocidade de cruzeiro: 579km/h

Alcance: 9.205km

Autonomia: 15 horas de voo

Teto de serviço: 11.887m

 

Rara foto colorida do único Saro SR.45 Princess a voar, o G-ALUN.

 

Grande demais para ser concluído dentro do hangar da Saunders-Roe em East Cowes, o G-ALUN é movido para a área externa, para finalização (incluindo as seções externas das asas).

 

Capa da edição de 8 de fevereiro de 1952 da revista “Flight and Aircraft Engineer”, do Royal Aero Club, mostrando uma ilustração da aventada versão militar do Princess, nas cores da RAF.

 

Belíssima ilustração do renomado artista L. Ashwell Wood, para a revista infanto-juvenil britânica “Eagle”, mostrando como seria o luxuoso interior do Princess, em seu conceito original. É curioso observar o cenário de fundo, do Rio de Janeiro.

Sobre o autor

Redação

Comentários

    • Podem até ter achado que não daria certo,mas milhares de vidas teriam salvas( e equipamentos) se muitos aviões que cairam no mar tivessem apenas amerrissado e aguardado socorro.

        • Sinto discordar: tem hidroavião da Boeing desaparecido no período pré segunda guerra até hoje. Amerrissar é algo bem complicado, principalmente quando se enfrenta, mau tempo, alguma pane de motor ou de equipamento. Se houver falha estrutural, então, dá na mesma. Não é por aí, infelizmente…

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